quarta-feira, 28 de abril de 2010

sans me rendre compte

Une nuit
sans me rendre compte
J'ai vu le diable.
Je l'ai vu
en los ojos de una mujer.
No titubeé.
Hoje, só, choro.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Os Homens Puros da Azenha

- relato fantástico -

A temática dos Homens Puros da Azenha vem instigando toda sorte de jornalistas e outros especialistas-do-que-é-genérico. Confesso que o assunto me atrai, até porque vivo próximo do suposto berço da famigerada confraria. Como contributo ao trabalho de desvendar os meandros da racionalidade dos Homens Puros, divulgo este pequeno artigo que seria, sem dúvida, publicado na revista O Cruzeiro não fosse a pesada censura imposta sobre referido semanário na década de 1970. Penso se tratar da última (e mais recente) [tentativa de] alusão pública aos Homens Puros.

“A confraria dos homens puros resistiu bravamente ao avanço do comércio e da indústria na Azenha. Relatos policiais do século XVIII informam que, desde o aparecimento dos primeiros moinhos na região, houve cidadãos reácios a nova matriz produtiva. Estes realizavam módicos protestos diante das hélices alvoroçadas. Tais manifestações consistiam em rituais baseados no consumo ostensivo do tabaco negro e do vinho tinto durante todo o período abarcado pela jornada de trabalho dos operários (então de 60 horas semanais). Dizem os amarelados papeis do Arquivo Público, que os homens puros, rejeitando a laboriosa rotina das moendas, acampavam às suas portas para estremecer a disciplina fabril. Os documentos históricos, contudo, pecam em não fornecer descrições precisas a respeito da procedência desses sujeitos. Não sabemos, portanto, quem eram e nem mesmo a qual setor social pertenciam.

Era prática, nos famosos acampamentos, que alguém se encarregasse de ofertar – a preços simbólicos – bebida e cigarros para os participantes. Na medida em que os moinhos se avolumaram e, por conseguinte, os acampamentos também, o comércio de víveres (permitam-me a ironia no uso da palavra) ganhou força. Em meados do século XIX, as primitivas fábricas de farinha já tinham perdido sua pujança, contudo os comerciantes de bebida e tabaco viviam seu apogeu. Estes homens gozavam de farta clientela, sem dúvida arrebanhada à época dos combativos acampamentos. Hoje em dia, são eles (ou, melhor dizendo, seus descendentes) que controlam a venda ostensiva de pequenezes da Azenha.

A Confraria dos Homens Puros segue rejeitando aqueles filhos pródigos que, com deslavado utilitarismo, se aproveitaram dos históricos protestos anti-moinho para converter a Azenha naquilo que certos arquitetos oitocentistas haviam chamado de “bairro com vocação comercial”. Entretanto, sem abandonar um profundo espírito auto-crítico, estes mesmos homens puros reconhecem, em seus rituais de intoxicação coletiva, que tiveram certa parcela de culpa no que consideram a “degradação final” do bairro. Ao lutar contra a indústria, fomentadora do progresso comercial, os confrades alentaram as formas mais mesquinhas do varejo.

Dagoberto de Souza, folclorista de inícios do século XX, chegou a acompanhar, durante cerca de oito anos, as atividades da Confraria dos Homens Puros da Azenha. Encontrava-se com eles nos bares da região ambicionando remontar o repertório de clichês e chavões utilizados por aqueles idôneos cavalheiros no momento de combater o que julgavam “afrontas ao bem viver e ao bem querer”. Os escritos de Souza apresentam as mais sólidas descrições disponíveis acerca dos Homens Puros e, por isso mesmo, servem como substrato à presente explanação. No terceiro tomo de “Breves apontamentos sobre as confrarias masculinas do Brasil meridional”, Dagoberto elenca alguns bordões correntes entre os Homens Puros:

- “De que outra cousa posso viver senão viver do que sei fazer?”
- “A fumar m'ensinam os confrades, a beber m'ensinou a avó. De amar me dão lição as moçoilas; para cantar m'oferecem razão. A mal-falar m'obrigo, portanto, de quem m'ensina a ensacar feijão”.
- “Dizem que bom partido há n'independencia, mulher de corpinho e milhão, mas não hei de negar, confrade, que mais barato me sai o cantão*”

Nota de Dagoberto:

* Depois de muito revirar a Biblioteca Pública com auxílio do Doutor Romero Figueiredo, vim a inteirar-me que o “cantão” evocado pelos bordões dos Homens Puros alude, em verdade, aqueles prostíbulos que se amontoam na Rua da Praia desde o crepúsculo da última centúria.

Após Dagoberto de Souza, poucos estudiosos se aventuraram a rastrear os expedientes da Confraria dos Homens Puros da Azenha. João Ângelo da Cunha Neto foi um deles. Engenheiro de profissão, João soube, com maestria, deslindar os princípios morais que serviam de base àquela obscura agremiação masculina da zona Centro-Sul. Em 1958, Cunha Neto publicou sucinto mas elucidativo artigo na revista de bairro “O Coqueiro”, onde manifestava sua admiração pelo que considerava “a mais original das idiossincrasias do Sul da metrópole”:

Mesmo há pouco tendo estabelecido residência nestas bandas, já tenho resposta para quando me inquerem sobre o que de bom brinda o bairro. Os Homens Puros, pois! Estes distintos cavalheiros, se bem não são o bastião moral da vizinhança, infundem em nossas noites os últimos ecos duma boemia nostálgica e romântica que bem poderia, não fosse o avanço das boîtes, seguir representando o restolho de originalidade desta urbe. Devemos vangloriar-nos destes cidadãos que muitos tildam “ébrios nostálgicos”, pois graças a sua aversão às contingências do progresso, instilam, entre mourões de concreto, algum reduto humanizado cujos serviços nos serão caros em hora de desesperação. As grandes alamedas estão impávidas - não se esqueçam - frente às angústias do homem quebrantado.

Desafortunadamente, o relato de João Ângelo é o último registro documental dos Homens Puros. Toda a informação atual que deles dispomos provem de relatos fragmentados. Trata-se de anedotas vulgares, fartamente disponíveis em qualquer moquifo capitalino. Elas afirmam que os homens puros se diasporizaram na década de sessenta e hoje pregam em todas as zonas da metrópole. De Buenos Aires chegam duvidosos informes falando da aproximação entre os Hombres Sensibles del Barrio de Flores e os Homens Puros da Azenha. Estes últimos teriam, sob pretexto do exílio político, fixado domicílio nos arrabaldes da capital argentina para, ao lado dos seus congêneres portenhos, fundar uma seita milenarista.

É quase impossível não manter cautelosa incredulidade diante de semelhantes elocubrações, certamente forjadas pelos históricos inimigos dos Homens Puros da Azenha. Particularmente, acredito ser inviável a teoria da dispersão, pois os homens puros, desde seus primórdios, estiveram espalhados por aí, alojados em lugar nenhum. Juntaram-se episodicamente no intento de demonstrar rechaço perante uma prática que os perturbava – a saber, a construção dos moinhos. Depois, organizaram fortuitas reuniões de bar, absolutamente informais. Sequer eram, portanto, os Homens Puros da Azenha. Arriscaria dizer que passaram a ser assim chamados por seus detratores. Na sua ingenuidade de folclorista, Dagoberto de Souza reproduziu uma categoria absolutamente artificial. Esta explicação, por si só, é suficiente para desbancar a suposição de que os Homens Puros – enquanto unidade – se exilaram em Buenos Aires.

Admito, entretanto, não ser eu o mais apto para responder qual destino tiveram aqueles que reivindicam a herança moral dos quixotes do século XVIII. Contento-me com evocá-los, torná-los plausíveis em minhas crônicas, sem perder a esperança de que seus ecos e gestos subsistam para além das letras".