domingo, 20 de dezembro de 2009

O Ritual do Mate

Caros,
pensei duas, três vezes, antes de fazer esta postagem. A proposta inicial do blog era veicular textos, poesias, inquietações nossas e escritas por nós. O texto que lhes apresento logo abaixo, foi escrito por outrem. Trata-se de uma reflexão sobre o ritual do chimarrão, feita pelo cronista argentino Juan Sasturain e traduzida por mim ao português. Justamente por ser uma tradução, acho que vale a pena compartilhá-la com vocês, já que as traduções incorporam muito da estética e da subjetividade de quem as realiza. Eis o grande drama de certos puristas, drama este que, pelo menos em algum momento já se abateu sobre a consciência de diversos aspirantes a etnólogo.
A tradução é algo que se propõe, que se oferece à apreciação dialógica mas que serve, na maioria das vezes, aos interesses e dramas do grupo em que se insere o próprio tradutor. Claro, há vezes, principalmente nos meandros do mercado editorial internacional, em que os interesses econômicos são recíprocos, existem do lado traduzido e do lado que traduz. Mais correto seria afirmar que qualquer tradução contempla, pelo menos, as aspirações do tradutor.
O texto a seguir (ou, melhor dizendo, minha decisão de publicá-lo) reflete uma busca por semelhanças que ando tentando perpetrar. Reflete um "olhar poético ao sul desnacionalizado", mas, nem por isso, despojado de inquietações nacionais. Quem sabe, o que desejo é arrefecer a brutal distância das pradarias estendendo pontes de identidade sobre o mar verde do pampa, esse bioma que isola e une.
Com relação a temática da crônica, temos um intento quase antropológico de Juan Sasturain em construir o mate enquanto metáfora de certas motivações que conduzem os homens a relacionarem-se entre si. Enfatiza-se, também, a figura do "cevador", muitas vezes apagada, colocada em segundo plano, mas que, na verdade, constitui-se como eixo central no ritual do mate desde seu início até os desdobramentos finais.
Bom, proponho, a seguir, minha tradução. Entre parênteses, há algumas N.A.s - ou seja, Notas do Alex - que podem ajudar na contextualização das imagens evocadas por Sasturain.
O Ritual do Mate (por Juan Sasturain)
É muito estranho o verbo cevar. Na fala cotidiana dos argentinos (NA: e dos uruguaios e dos riograndenses) se usa quase com exclusividade para aludir ao trecho intermediário do ato/ritual de matear: é chamada de "cevar" a operação que se interpõe entre preparar o chimarrão e tomá-lo. Cavar - a arte de cevar, referida e comentada poe Amaro Villanueva em memorável livro - é pontualmente o coração do ritual: largar água na erva, dar forma à infusão, fundá-la. Aí está a verdade, o ponto chave, o que realmente importa.

O chimarrão pode ser tomado por uma pessoa sozinha, em dupla ou, como se supõe que ocorreu nos primórdios, em grupo. Quando se toma chimarrão sozinho, freqüentemente é o próprio sujeito quem prepara, ceva e consome. Isso fazem, hoje, muitos homens e mulheres, de manhã antes de sair ou enquanto trabalham no computador. Entretanto, nem sempre foi assim: a tarefa de fazer/cevar o mate foi, durante muitas décadas, tarefa feminina, extensão "natural" do trabalho da mulher (tomasse ela ou não o chimarrão; fosse ela esposa ou empregada) na cozinha: "Me ceva uns mates aí, Catarina...", diz o valentão batalhador do terrível "Amasijo Habitual" (NA: letra de tango do célebre Carlos Púa: "cebame un par de mates, Catalina..."). E sem ir tão longe: vi meu pai tomar mate durante quarenta anos em casa e nunca foi ele quem preparou nem cevou.

É que, tacitamente ou em teoria, o cevador é aquele que sabe (ou deveria saber), o que conduz a cerimônia. Assim sendo, desde o início, o cevador de turno pode rechaçar a água por estar fria ou por estar fervida, corrigir a "montagem" do chimas, tirar erva ou colocar mais e, já no exercício de seu cargo, é ele quem, depois de descartar as primeiras porções frio-amornadas, dispõe a intensidade e o ângulo de incidência do jatinho d'água (provindo este de garrafa térmica ou chaleira) - rente à bomba, nunca diretamente sobre a verde superfície - e, enquanto vai molhando a erva por setores, oferece o primeiro e depois os sucessivos mates, até diagnosticar, em algum momento, seu definitivo esgotamento.

O saber e o critério do cevador são questões chave por uma simples razão: o mate não é, ele vai sendo. Assim, quando um recém chegado se incorpora na roda, pode perguntar como está o chimarrão. Ou seja, qual é o seu estado. Como quem pergunta pela saúde de um doente ou pelo aspecto do céu, ou pelas perspectivas de um dia no geral. Há certas respostas que, expostas aqui a título de exemplo, dão conta deste gradiente: recém feito; é novo; tomável/aceitável; tá dando ainda; meio passado; passado; frio; gelado; lavado; esquenta a água; faz outro novo lá.

Porque o mate, como o pão da padaria, tem uma duração, descritível em termos de parábola, cuja medição não se ajusta a nenhuma nomenclatura rígida do tipo "data de validade". O próprio mecanismo da sua geração, sempre atualizado, torna os mates sempre únicos e diferentes: não há, ao longo de uma série, do primeiro ao vigésimo - digamos -, dois iguais. Nunca tomamos o mesmo mate, diria Heráclito. As variáveis - água e erva, sobretudo - jamais são as mesmas. Nos primeiros trechos (mates) partimos de um máximo de temperatura e de um mínimo (grau zero) de umidade da erva. É aí que se dá a máxima - não necessariamente a melhor - concentração de sabor: erva homogênea que sobe em bloco, com espuminha. Depois, tem uma zona intermediária na qual os extremos arrefecem - enquanto a água amorna, a erva fica empapada - e o sabor, paulatinamente, retrocede em intensidade, junto com a espuma em fuga e a menor elasticidade e capacidade de resposta da erva, tendente, cada vez mais, a ficar grudada no fundo, deixar a água sozinha e com isolados náufragos na superfície: sintoma irreversível de esgotamento funcional. O mate, como tal, morreu.

Quanto dura esse processo? O mate é humano, sumamente humano. As vezes, os elementos constitutivos não são nobres - água duras ou excessivamente cloradas, ervas ordinárias, saturadas de pó e galhos - e tudo se deteriora precocemente, de saída no mais. Em outros casos, falhas de conceito na origem - temperatura da água, quantidade de erva - costumam ser fatais e fazem o chimas morrer jovem. Na quarta servida, o mate já está virado em água. Outras vezes, o cuidado e o pulso do cevador, a zelosa administração da água e o controle sobre os tomadores irresponsáveis - aquele que mexe a bomba - ou desatentos - o que toma devagar, deixa a água acumular e esfriar sem tomar - costumam garantir uma longa vida produtiva e satisfatória para o chimarrão.

Neste ponto, cabe voltar ao início. Cevar significa, em primeiro lugar, alimentar ou - para ser mais claro e específico, numa segunda acepção imediata - alimentar com uma intensão que transcende a necessidade ou o desejo do alimentado e responde mais a um designo do cevador. Assim, pode-se cevar alguém - como o peru, para comê-lo no Natal - jogando com sua inaptidão ou apetite excessivo. Também é possível autocevar-se: um tigre cevado é vítima da sua experiência; provou - caçou e gostou - a carne humana e se acostumou. É perigoso para si mesmo e para os demais. Assim, cevar é, por correlação - dou um passo mais, na mesma lógica de raciocínio -, pôr a isca (NA: No original, o autor faz um trocadilho com o verbo "cebar" e o substantivo "cebo", que significa isca no castelhano utilizado na região do Prata): oferecer alimento atraente para que o receptor belisque, coma, entre... A gente pega os peixes assim; os homens também. Cevar é, desta forma, seduzir. Te dão comida para te converterem em comida. Aquele que se cevou - se cevou ou foi cevado - perde. Está acostumado a receber e passa ser escravo ou vítima do seu desejo, da sua necessidade. É um viciado; por isso, cevar-se é, também, exceder-se.

Cevam-se - sério mesmo! - também os explosivos. Quando pequenos, usávamos a palavra "cebitas" para referir-nos às minúsculas (e ineficazes) espoletas que carregavam os revólveres de brinquedo para provocar, com o cão, as pequenas explosões que simulavam disparos... Revólveres de "cebita", se chamavam. Assim, o ato de cevar tem sempre algo de segunda intensão, dissímulo ou engano.

É coerente não desdenhar mencionados aspectos quando falamos do ato de matear. Porque, voltando à esgrima nacional do porongo, da erva e da água quente, se escreveu muito - partindo da tradicional administração feminina da "cevadura" - sobre a "linguagem do mate", os significados erótico-amorosos que podiam depreender-se a partir de cada mate (frio, amargo, doce, longo, curto) que uma mulher cevava para um homem. Cevar era exatamente uma forma de seduzir/rechaçar, dialogar intencionalmente. O mate como isca e arma ao mesmo tempo. Como metáfora.

Um pouco disso tudo existe. Cada vez que cevamos/tomamos mate, a cerimônia atualiza esses tácitos significados.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Era azul e tu criança

Apareceste onde vivo
em temor claustrofóbico
e ânsias loucas de sei-lá-o-que.
Apareceste no recôndito íntimo
que é algibeira do trauma,
e esquife do Édipo.

Ali onde vivo e sobrevivo
apareceste.
Eras suor e lágrimas.
Eras filtro da malha leve do suéter.
As tiras de couro aferradas aos pés
longilíneos.
A distância medida em anos-luz
entre lunares que constelam
tuas espáduas.

Apareceste ali onde sobrevivo e resisto,
onde encontro o combustível de
amor e ódio que engendra
minhas batalhas e meus caminhos.
Foste o semi-perfil de criança
num passaporte novo e azul.
Foste a tez onde o arco-íris
não esmoreceu; a voz descontínua
que prolonga em tons altos e vocálicos
o crepúsculo dos verbos.

Quando apareceste ali onde resisto e ressinto,
onde sou gradiente contínuo do azul
ao vermelho,
impuseste a tênue ruptura da verdade
sussurrada.
A ruptura que nos arremessa
ao centro ideal de qualquer coisa
e nos torna potência com o
dom de devir no mais radical dos extremos.

Ali onde rabisco minha escatologia,
apareceste.
Produziste o belo com os
dejetos ocos e solícitos duma
catarse salobra, ingênua e risonha.
Catarse assimilada, quilômetros atrás,
pelo murmúrio do Rio mítico
cuja margem é marrom de Portos
e o leito, coágulo de sangue, madeira
e níquel.

Apareceste onde sou terno e tísico.
Desabaste da estante de Jacarandá qual
brasão federal, qual ídolo laico e burguês.
Teu estrondo em meu íntimo
foi de fechadura antiga, bronze denso
e oxidado. Corredor vazio.

Debruçaste-te pesadamente sobre
o que posso ser
com a naturalidade de quem
apenas reforça o mais belo
dos seus gestos ao advertir
o reflexo redondo da objetiva
fotográfica.
Naturalidade de quem rechaça,
com motricidade fina,
a beleza do espontâneo.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

O novo e o próspero

É noite aqui em meu peito,
Caminho veloz,
Na urgência de um encontro com meus versos,
Remédio eu não tenho,
Para a velhice então...
Só uma faixa na cabeça,
Tem de ser vermelha,
Porque vermelha é a cor contra o tédio,
E para os que não se socorrem:
Uma lata de tinta,
Um vinho,
Um sangue de barata.

É noite aqui em meu peito,
Sofro
Sem saber o que sou
Sem saber o que serei
Vilão, herói,
O pensamento corrói
Mata, estraçalha, atrapalha,
E a gente perde a visão,
E a gente solta o guidão,
E o tempo arrasta,
E o vento leva.

É noite aqui em meu peito,
O barulho dos ratos incomoda,
O catarro, o calor, o fervor,
Tudo é nota contra o verão.
Mas inverno, inverno eu não quero mais.
Procuro uma coisa sem nome,
Procuro um pão para saciar a fome,
Procuro a beleza,
O sublime na comunhão,
O eterno no fugaz,
Procuro um gás,
Uma forma de morrer sem sentir dor.

É noite aqui em meu peito,
Cheiro a cereja como o gosto do filme,
Cheiro a saudade,
A maracujá,
Cheiro ao momento,
A esta remota chance de ser feliz
Mas até quando?
Até quando os fantasmas me deixarão em paz?
Cheiro e choro e chego
E chuva
Chuva pra gente se lavar.

É noite aqui em meu peito,
Adormeço e desperto,
Onírico e esgotado,
O meu time não venceu,
As minhas contas não foram pagas,
O meu chuveiro acaba de queimar.
Ah! Se ao menos os meus versos fossem encontrados,
Se ao menos um israelense cruzasse a fronteira e declarasse apoio a causa palestina
E se ao menos uma mulher chorasse neste instante pelos índios oprimidos e queimados
Se o mundo assim fosse
Quem sabe deus seria absolvido.

É noite aqui em meu peito,
Ronco e afogo,
Tempestade, evém luz, evém trovão!
Arranca árvore, arranca prédio, arranca inté coração,
O meu não!
Não vou mais deixá-lo assim na rua,
Desalentado,
Daqui pra frente irei guardá-lo,
E os meus versos,
Com muita fé hei de encontrá-los,
Mesmo que sujos, mesmo que bêbados,
Mesmo encharcados,
Preciso deles,
Preciso para secar as dores do varal,
Para romper, pra florescer, para adoçar meu dissabor
Para aquecer o novo e o próspero
Que não sei,
Que não saberei, talvez,
Mas sabe de uma coisa?
Acho que é isso mesmo...
Vai clarear
E amanhã bem de manhã em meu peito o sol irá nascer
E a noite acabará
E será você.

sábado, 14 de novembro de 2009

Me gritas

Vento na cara
e a chuva respingava no vidro.
Eu, sem vapores, agradecia
a absolvição de te haver perdido!

Te perdi!
Não mais me devoras!
E não havia João; Maria se perdera na última ligação.
Eu, a chuva, o taxi.
Sem ti, sem eles, sem ninguém.

E o peito ficou vazio. Andei vazio.
Não foi ruim. Sequer foi péssimo.
Como foi bom extraviar-te, minha cara.
Mas "por favor" - disse no prazer dum quase
espasmo -, "que seja apenas por agora".

E violentamente irrompeste logo após.
Foi quando a chuva golpeou meu corpo,
minha cara deslavada, minhas mãos de dedos
nicotinados.
Foi no seio duma hora vazia.

Aí! Justamente aí irrompeste, cara minha.
Agora peno.
Peno porque faltaste.
Peno porque às 17:15, horario da Capital,
não manchaste tela alguma com tua doce letra.

Agora, que sou só tu, que sou só,
me sei só,
me sei latinoamericanamente melodramático;
desenterro a dúvida estúpida que anseia o óbvio.

Agora que sou ebriedade misturada com
café e analgésico, que sou "cualquiera"
na escuridão do bairro vazio,
novamente, te anseio e me dóis.

Assim deves ser: doida, novelesca.
Eu, nada quixotesco; eu, melodramático.
Tu, musa de armário, musa cômoda das
madrugadas etílicas.

Tu, Júpiter sobre o Oriente Médio,
a mão do império, a pose de quem coloniza.
Essa pose idealizada tão duramente
em dia e noites sem amor e de guerras.

Tu, arrasadora de peitos,
agora estás em mim, de-fi-ni-ti-va-men-te.
Depois do fortuito apagão,
aninhas de novo numa existência vaga
e és mais imponente do que nunca, semblante
estelar.

Tua ausência me gritou há minutos,
talvez horas atrás,
o que era estar no mundo sem vos.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

A metáfora devora em lógica circular e versos tortos

Da metáfora que
ilustra a prática,
surge a razão da ação concreta - essa redução -,
de cruzar mares
e poças, cortar ares.

Na metáfora de
ilustre prática,
ideologiza-se o passado anti-heróico
cuja alegoria presente - esse diabo de cinzas! -
alenta vetores que surtam
mas não mudam, não mudam
nem libertam.

Da metáfora do
texto que só evoca - mas não afirma-,
da poesia oca e libertina,
sai a lógica circular
que se condensa e satisfaz
no amálgama impossível
dum cabal ponto final.

domingo, 8 de novembro de 2009

O meu Levi Strauss


Não tenho dúvidas quanto a posição de neófito que ocupo entre àqueles que estudam antropologia nesse país. No entanto, depois de quatro anos de aprendizado e, sobretudo, aprendizado na prática, por meio do convívio com outros neófitos, com àqueles que ocupam posição de mestres e com a leitura de alguns textos, tenho algo a dizer sobre o falecimento de Levi Strauss nessa última semana. Sem dúvidas será um relato pessoal que não quer nada falar sobre a importância de suas obras, sobre o impacto de seu pensamento em nosso pensamento sobre o pensamento selvagem (rs!), tampouco sobre sua trajetória. Depois de quatro anos, tempo que compartilho com algumas das pessoas que também escrevem nesse espaço, criamos relações com os autores. Já não são mais pessoas desconhecidas e distantes, como Alex disse sobre Mercedes Sosa “Escutar suas músicas seguro de que, não tão longe do Porto Alegre, Mercedes vivia e cantava, destilando sua tristeza em versos, sempre foi um consolo para mim.” De tantas vezes lidos e relidos, passamos a ficar íntimos de muitos deles. Ainda que na maior parte das vezes essa intimidade mais se parece com poder tomar café com uma tia sempre disposta a falar, do que ter domínio sobre o modelo analítico que propunham. De todo modo Levi Strauss era um desses para mim, íntimo. Outros dois me soam íntimos também: Mary Douglas e Victor Turner. Mas com estes eu já administrava bem a questão de me relacionar com dois mortos.

Agora, Levi Strauss morto é um pouco desestabilizador. Justo nesse período em que estou lendo e relendo, incansavelmente, “O Pensamento Selvagem”... Ele me abandonou mais ou menos quando estava na minha quarta leitura do segundo capítulo, estava quase entendendo algo, eu juro. Se pudesse definir Turner em poucas palavras, ao menos o Turner com quem vira e mexe me relaciono, eu diria que é um bom contador de histórias, divertido e que faz tudo isso sentado no chão da sala, também o relaciono com a cor marrom. Já Mary Douglas é mais séria, erudita, daquelas que causam inveja, mas também é um pouco teimosa demais, não a relaciono com uma cor, mas sim com o cheiro de madeira.

Levi Strauss é/era (afinal nossa relação está passando por um momento temporal confuso) surpreendente. Uma daquelas pessoas que são capazes de te conduzir por um caminho, explicar todos os pontos que passaram, explicar porque o fizeram assim e quando você está convicto de que o ponto de chegada está a sua esquerda, ele mostra que está para cima e a direita. É surpreendente a ponto de colocar-me em lugares que não tenho nem palpites, sequer arriscaria um chute sobre como prosseguir. Talvez eu o definisse como um sujeito robusto, que me remete a um tecido de paletós velhos, mas admiráveis.

Falar de Levi Strauss é difícil, optei por descrever o que sinto em relação a ele (e de tabela sobre Turner e Mary Douglas) de um modo íntimo, provavelmente incompreensível, mas íntimo. Sinto-me próximo desse meu Levi Strauss, um Levi Strauss que conheço faz algum tempo, mas ainda bastante enigmático. Falo aqui do filósofo, do etnógrafo, de um dos maiores intelectuais do século, mas antes de tudo isso de um sujeito sempre disposto a dizer algo nas manhãs ou nas madrugadas que o convido a ser riscado por minha lapiseira. Uma vez escritos, o escritor já não têm mais domínio sobre seus textos. Uma vez escritor, não se tem mais domínio do que pode se transformar para aqueles que o lêem. Se aceitam minha proposta, escrevam sobre o Levi Strauss de vocês.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

¿Qué pasó en Uruguay?

Às 22h de sexta-feira (24 de outubro), partiu do Theatro São Pedro, no centro de Porto Alegre, o ônibus fretado que levaria um grupo de quase 50 imigrantes uruguaios para votar em Montevidéu. A viagem foi intensa, embalada pelo violão e por vozes que cantavam velhas músicas do combate e do carnaval. Cruzamos a fronteira por Jaguarão – palco de remotas incursões semi-clandestinas ao território uruguaio durante a agonia da ditadura – em meio a relâmpagos e lufadas dum vento tempestuoso. A chuva se abateu sobre a aduana quando ainda fazíamos os trâmites de documentação. Tempestade breve e ruidosa, chuva horizontal, bagagens encharcadas.

Recém havia amanhecido quando adentramos pelas ruas de Minas. Os uruguaios procuravam um lugar para comer. Queriam encontrar, também, comitês da Frente Ampla (Encuentro Pogresista – Frente Amplio – Nueva Mayoría, maior partido de esquerda oriental) onde pudessem abastecer-se do material de campanha necessário para decorar o ônibus. Numa confeitaria de esquina, onde atendiam mocinhas irrequietas, os viajantes desfrutaram dos doces que, fazia tempo, não comiam. Pediram café, capuccino, sucos, bizcochos, estavam eufóricos e a expressão dos seus rostos me alegrava. Terminado o desayuno, vi Gustavo chegar com rolos de faixas e cartazes que prontamente seriam afixados na carenagem do ônibus. O artesanato político levou-se a cabo com ajuda de frenteamplistas locais solidários aos companheiros chegados do Brasil. Partimos imersos numa atmosfera de balões e pasacalles que chamava a atenção dos pedestres e motoristas.

Aos poucos, Montevidéu foi crescendo ao nosso redor, e com ela vieram lembranças de outros tempos. A infância, o passado dos uruguaios que viajavam comigo irrompia em cada rua, nos parques, na rambla. “Ali eu nasci”; “...depois me mudei para lá”; “Aqui havia um presídio”. Quando os edifícios de Pocitos começaram a aparecer, uma voz feminina comentou, provocadora: “Podríamos haber entrado por otro barrio, más popular, donde realmente está la gente”. Um homem disse: “Por qué él [o motorista] no toca bocina?”. Alguém respondeu: “yo le pedí que tocara, pero no hay caso”. Um terceiro: “Ah! Ahora si la está tocando!”. Chegamos à antiga terminal de ônibus depois do meio-dia. Frenteamplistas concentrados no local ofereceram uma calorosa recepção aos seus distantes compatriotas. Abraços, re-encontros, tios, primos, sobrinhos, compañeros, camaradas e a imprensa. Estes foram os elementos que compuseram a paisagem da nossa chegada a Montevideo. A partir daí, o grupo dispersou-se entre hotéis e casas de parentes.

Com Mabel, tomei um coletivo até a Puerta de la Ciudadela, onde meu amigo Santiago nos esperava. Deixamos as mochilas no seu apartamento e fomos ao Mercado del Puerto comer empanadas. O sol amornava a Ciudad Vieja e um já conhecido ventinho fresco filtrava-se, tranqüilo, pela simétrica retícula urbana. Depois do almoço, Mabel foi para a casa de uma tia no Cerro. Santiago e eu fizemos longo passeio de bicicleta pela Rambla. Andamos muito, acompanhamos a movimentação eleitoral em Pocitos – onde militantes frenteamplistas, blancos e colorados agitavam suas bandeiras e cantavam jingles de campanha –, tomei mate e ofusquei-me com os reflexos amarelados da luz solar sobre o Rio-Mar. Entrada a noite, violamos a lei seca num discreto bar próximo ao Bulevar España.

O domingo, dia da votação, estava ensolarado. Com câmera fotográfica a tira-colo, percorri, na companhia de Santiago, Ernesto e Eduardo – estudante brasileiro de antropologia – o Centro da cidade. Incursionamos em sessões eleitorais das ruas Estados Unidos e Maldonado, onde meus dois amigos orientais depositaram, entusiasmados, seu voto pela esquerda e seu aval aos plebiscitos de anulação da lei de anistia e aprovação do voto epistolar (voto no exterior por carta). Nas ruas, automóveis embandeirados e bozinaços coroavam a festa eleitoral. Tremulavam, pelas esquinas, dezenas de estandartes frenteamplistas sobre varais improvisados. Das janelas dos edifícios assomavam mãos que faziam o “V” da vitória. Ao longe, vozes isoladas gritavam “vamos arriba el Pepe” (em referência a Pepe Mujica, candidato da Frente Ampla à Presidência da República). Caída a noite, chegou o momento de acompanhar os primeiros resultados difundidos pela televisão.

Primeiro, euforia. Santiago olhou-me atônito e empolgado. De acordo com o porta-voz da “encuestadora” Factum, ainda não era possível dizer se haveria segundo turno. Com relação aos plebiscitos, provavelmente a lei de anistia seria anulada mas aos uruguaios residentes no exterior se lhes negaria o direito de votar. Depois, desânimo. Uma segunda projeção, esta embasada em amostra mais representativa, confirmava o segundo turno. Previa, também, a derrota do “SÍ” em ambos plebiscitos. Eu não podia acreditar, estava diante de um revés significativo para as demandas políticas não só da Frente Ampla, mas também dos muitos uruguaios residentes no exterior, meus companheiros de viagem, meus solícitos interlocutores. Senti sono, um sono evasivo, mas, ainda assim, decidi ganhar a rua rumo ao ato da esquerda nas imediações do hotel NH Columbia. Chegamos tarde, depois do pronunciamento de Pepe Mujica . Muitos simpatizantes da FA se retiravam. No lugar, permaneceram jovens militantes de distintos setores oficialistas que festejavam ao som do rock argentino, uruguaio e, mais tarde, da cumbia. Encontrei uma conhecida chamada Pia, militante do Partido Socialista: “ya lloramos todo lo que podríamos llorar” - disse. Lamentou profundamente a derrota nos plebiscitos: “La gente no entendió nada”. Consolou-se afirmando que seguiriam lutando porque sua opção pela esquerda não dependia de eventuais revezes eleitorais.

A noite do domingo acabou tarde e minha segunda-feira iniciou às 15h. Mal tive tempo de comprar o jornal La República cuja alentadora manchete principal anunciava: “En noviembre Mujica será el presidente: obtuvo ya el 49,18% de los votos válidos”. Por volta das 18h, cheguei à antiga rodoviária onde já me esperavam os militantes da FA com quem empreenderia viagem de retorno. No ônibus reinavam a consternação e a perplexidade. “Qué pasó?” era uma pergunta corrente. Luiz quis saber minha opinião a respeito do resultado das urnas; arrisquei alguns palpites que, depois, serão compartilhados com vocês aqui no Porta Prosas. Por agora, me limito a transcrever a apropriação feitaNegrito por Gustavo duma célebre frase de Eduardo Galeano sobre o “caráter nacional” uruguaio: “los uruguayos somos tres millones de anarquistas conservadores y egoístas”.
Fotos: Jovem uruguaia vota em circuito da rua Maldonado; Militantes da Frente Ampla em comemoração próximo ao hotel Columbia. (Alex Moraes)

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Axel Honneth em Porto Alegre

Vinte anos depois da vinda de Jurgen Habermas à cidade, Porto Alegre recebeu mais um brilhante filósofo: Axel Honneth.
Nascido em Essen (Alemanha), em 1949, tornou-se professor de filosofia na Universidade J. W. Goethe em Frankfurt em 1996 e desde 2001 é diretor do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt (ou, mais conhecidamente, a "Escola de Frankfurt"). Seus escritos concentram-se na área da filosofia social, política e moral, formando um ambicioso programa de pesquisa voltado tanto para a explicação teórica quanto para a compreensão crítico-normativa das relações de poder, reconhecimento e respeito nas sociedades capitalistas modernas.
Nos dias 29 e 30 de setembro e 1º de outubro de 2009 foi realizado o "IV Simpósio Internacional sobre a Justiça", organizado pela PUCRS e pelo Goethe-Institut Porto Alegre. Eu estive por lá e quero registrar, aqui, alguns pontos importantes das palestras.
Foram três dias do mais profícuo debate intelectual. Nos dois primeiros dias, foram realizadas leituras por Honneth seguidas de debates com interlocutores. O que mais agradou o público, creio eu, foi o diálogo do segundo dia, entre o professor Honneth e Hans-Georg flickinger. Isso inclusive obrigou o primeiro a reconsiderar alguns pontos inprecisos da "Teoria do Reconhecimento". Honneth resgata o conceito de "luta por reconhecimento" do jovem Hegel. O propósito da teoria é dar conta da "gramática" dos conflitos e da "lógica" das mudanças sociais, tendo o objetivo mais amplo de explicar a "evolução moral" da sociedade.
No artigo de Denilson Luis Werle, publicado na revista "Mente, Cérebro & Filosofia", nº 8, temos uma clara explicação sobre os fundamentos da "luta por reconhecimento". Diz Werle que "baseado em Hegel, Honneth identifica três dimensões do reconhecimento distintas, mas interligadas. A primeira consiste nas relações primárias baseadas no amor e na amizade, e diz respeito à esfera emotiva, em que é permitido ao indivído desenvolver uma confiança em si mesmo que é indispensável para seus projetos de auto-realização pessoal. A segunda dimensão consiste nas relações jurídicas baseadas em "direitos". Trata-se da esfera jurídico-moral, em que a pessoa é reconhecida como autônoma e moralmente imputável e desenvolve sentimentos de auto-respeito. A terceira e última dimensão é aquela que concerne à comunidade de valores baseada na "solidariedade social". Honneth está pensando na esfera da estima social, na qual os projetos de auto-realização pessoal podem ser objeto de respeito solidário numa comunidade de valores" (Pg. 55).
Apesar de entender pouco sobre as teorias tratadas na ocasião, alguns meandros acerca da teoria do reconhecimento foram esclarecidos. Ela permite, por exemplo, identificar conflitos sociais em nível pré-linguístico, ou seja, aqueles ainda não expressos racionalmente.
Duas ideias eu considerei importantes para, quando for possível, pesquisar. Em Hegel, o capítulo sobre a "sociedade burguesa" do livro Filosofia do Direito, pois aí temos a descrição do que se entende atualmente por "esfera privada". A outra referência está em Durkheim que forneceu a chave para descortinar a "infraestrutura moral" da sociedade através da análise de práticas punitivas. Ou seja, o que a sociedade condena através de sanções.
O terceiro dia foi mais suave. Respondeu a questões mais pessoais (como o sentimento de ocupar a cadeira que foi de Horkheimer, Adorno e Habermas e sua predileção por Bob Dylan). Sem entrar nos pormenores das críticas dirigidas aos seus antecessores e também das heranças apropriadas e transmitidas, acho importante destacar o seu distanciamento com relação ao conceito de "negatividade". Para ele, a teologia expressa na negatividade se devia muito ao fato de Horkheimer e Adorno serem judeus, oriundos de famílias tradicionais, etc.
Acredito que um dos segredos para a Escola de Frankfurt se manter viva e criativa se deve à prática incessante da crítica interna e do diálogo construtivo com outras tendências teóricas. Admitir que as teorias são imperfeitas, embora mais que necessárias.
Entendi a necessidade de multiplicarmos por mil a compreensão que fazemos da vida social. Como? Aprimorando conceitos, rejeitando teorias simplistas e dialogando abertamente com os outros, mesmo quando não haja concordância.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Se nos fue Mercedes



UNA COSA SOSA
por Juan Sasturain

Mercedes era una cosa Sosa.
Con mayúscula, digo: tucumana .
cantora sola, voz soberana,
clase de una, negra y golosa.

Pero ante todo, fue generosa
con el verso y la oreja americana.
Nos cantó a don Ata y a la hermana
Violeta, al Cuchi y a Zitarrosa.

Mercedes hizo su destino en vida.
Más allá del aplauso y de la fama
encarnó a la Tierra. Confundida

en piedra y consumida en llamas
queda la imagen final, tan parecida
a un Buda criollo, a la Pachamama.

--

Estava em um quarto de hotel da capital argentina quando, no passado domingo, me chegou a notícia de que Mercedes Sosa morrera. Dias antes, havia lido no “amarillista” diário Crônica que La Negra encontrava-se hospitalizada em estado grave. Não levei muito a sério tal informação por conhecer o caráter sensacionalista das matérias que se publicam em Crônica e por saber que Mercedes Sosa não podia morrer. Fiquei realmente impressionado quando me disseram que o corpo da cantora já estava sendo velado no Congreso de la Nación.

Desde pequeno, escutava em velhos vinis as canções interpretadas pela Negra. Já adolescente, escolhi Mercedes como guia musical e adentramos na atmosfera do folclore argentino. Conheci, graças à Mercedes, o célebre Atahualpa Yupanqui, e emocionei-me reproduzindo à exaustão temas como “Lunita tucumana” e “Guitarra dímelo tú”. Interessei-me pela nova canção chilena de Violeta Parra ouvindo a pujante voz da Negra entoar “Hermano dame tu mano”. A tucumana Sosa, desde que irrompeu entre minhas preferências musicais, trouxe influências que decantaram permanentemente neste manancial que concebo como identidade pessoal. Escutar suas músicas seguro de que, não tão longe do Porto Alegre, Mercedes vivia e cantava, destilando sua tristeza em versos, sempre foi um consolo para mim. Sabê-la viva e imaginá-la transcendente conduziu-me a duvidar de que, numa madrugada qualquer, La Negra poderia se calar definitivamente. Daí o nervosismo e a perplexidade que se abateram sobre meu peito no último domingo.

Perto da 1h da madrugada, cheguei com María Pia, Andrea, Santiago e Juliana ao parlamento argentino. Não havia fila nem multidão. “Te agradeço pelo retrato que nos trouxeste deste continente”: esta foi a ambígua mensagem que deixei nos painéis destinados para tal fim próximo ao local do velório. Entramos calados no edifício do Congresso, caminhamos entre coroas de flores ofertadas por partidos políticos, sindicatos, famílias e empresas. Cordões vermelhos indicavam-nos por onde passar: corredores amadeirados, janelas pelas quais circulava o ar congestionado duma noite que esperava a tormenta, pequenos grupos de pessoas conversando baixinho nos cantos, cheiro das flores que desvaneciam e Mercedes. Maçãs do rosto maquiadas, olhinhos tranquilamente fechados, Mercedes. Depois de ter conhecido, ainda novinho, a obra da Negra através dos discos de meu pai, competiu-me, por casualidade, a missão despedí-la.


Deixo aqui, o enlace para uma interessante matéria de Karina Micheletto a respeito da morte de Sosa: http://www.casamerica.es/opinion-y-analisis-de-prensa/cono-sur/mercedes-la-voz-que-fue-un-continente

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Desastre Socioambiental

"A explosão de uma loja que vendia fogos de artifício e brinquedos, localizada em uma rua repleta de casas e pequenos comércios em Santo André (Grande SP), matou duas pessoas, feriu outras 15 e destruiu quatro casas. O local ficou devastado -outras 30 casas foram evacuadas e a rua ficou encoberta por destroços, sujeira e uma fumaça espessa" (Folha de São Paulo. Ano 89, Nº 29.395, 25/09/2009).

O jornalismo registra os fatos. Árdua tarefa para o Sociólogo acompanhar e, mais ainda, desvendar o significado oculto dos fatos cotidianos. Por isso teorizamos: para ressignificar o que, pela repetição, se torna banal, corriqueiro, destituído de importância.
As explosões em Santo André não podem ser tratadas como simples "acidente". É o diagnóstico das atividades humanas quando, essas, geram consequências imprevistas pela simples racionalidade econômica.
Dito de outra forma: a complexidade do meio ambiente é reduzida apenas no seu valor econômico em detrimento dos demais valores (social, cultural, político e ambiental). O problema é que os prejuízos cobrem todas essas esferas (ou campos) incluindo o econômico.
O pior é que tal perversidade não contribui para o amadurecimento da sociedade se ficar preso a descrição dos fatos. Essas pessoas não podem contestar algo que não seja o dono do estabelecimento, já que o pensamento responsável pelo desastre é algo internalizado na cultura e nos hábitos individuais e coletivos, por isso se repetem, mesmo que de outra formas.
Outros dois fatores se relacionam com os já mencionados (que por motivo de tempo serão apenas citados): a necessidade de descentralização como medida para conter o "inchaço urbano", apontado por Ignacy Sachs no seu livro "Rumo à Ecossocioeconomia", e a pobreza que leva, necessariamente, a um grande contingente de pessoas conviverem com riscos industriais ou estruturais.
Acredito que ao invés de "acidente" devemos rotular o acontecimento de "desastre socioambiental". Levamos em conta, com base nos grandes pensadores do nosso tempo, a complexidade dos saberes que se preocupam com a vida e com a justiça social.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Come quieto

Há cerca de dois meses, em Montevidéu, assisti um ato público seguido de conferências para discutir o golpe de Estado em Honduras. Naquela ocasião, falou-se bastante sobre qual o papel da comunidade internacional latinoamericana na questão. Houve consenso em torno da idéia de que o atual momento da política externa no continente exigia interferência das nações Sul Americanas no caso, reduzindo a participação dos Estados Unidos. Esta seria uma forma de enfatizar que os projetos progressistas em marcha na região podem ser sustentados pela solidariedade entre os governos do Sul, sem tutela ianque. Favoreceria-se, desta maneira, a gradual consolidação dum espaço de influência e circulação para novas modalidades de gestão, distanciadas dos velhos e nefastos ditames nortistas (cuja presença se fez notar, inevitavelmente, nos pacotões de medidas econômicas “sanitárias” que chegaram embutidos em empréstimos milionários esparramados pela América Latina). Se na economia demoraremos um pouco mais em romper a hegemonia, podemos, contudo, aproveitar-nos das margens de manobra que a política oferece neste momento – tal foi a lógica das discussões em Montevidéu. Mas quais países estariam habilitados a representar o bloco do Sul na pressão pela restituição do presidente hondurenho? Venezuela? Argentina? Bolívia? Paraguai? Os quatro juntos? E o Brasil? - Perguntei. Um jornalista presente na mesa de debatedores ofereceu vaga resposta, não sabia muito bem qual tinha sido o histórico dos posicionamentos do Itamarati frente ao impasse. Quando abri o jornal, hoje pela manhã, soltei um “ufa!” de tranqüilidade e satisfação. A manchete principal dizia: “Agora, é restituição ou morte – Presidente deposto de Honduras volta e se refugia na embaixada brasileira”. Parece que o Zelaya (foto - já na embaixada do Brasil) esteve viajando umas 15h por picadas escuras, trocando de veículo constantemente para evitar barreiras do exército, até ser recebido, de braços abertos, na representação diplomática brasileira em Tegucigalpa. Alegra-me saber que longe do ausentismo alardeado por alguns, o governo brasileiro optou por manter posição ativa e decisiva frente à tragédia de Honduras. Espero da política externa brasileira que, cada vez mais, seja generosa e sensível no desempenho das suas funções de mediadora desses novos tempos latinoamericanos. Aos analistas internacionais, sugiro que atentem para o Brasil se quiserem efetuar avaliações mais completadas dos atuais processos políticos no continente, afinal, a palavra hispânica “cambio” tem tradução direta para o português (“mudança”) e o país de Lula protagoniza, ao lado de outras nações, um ousado projeto de invenção da soberania no Sul do mundo.

domingo, 13 de setembro de 2009

Mi Patria está en la Frontera

He dicho Escuela del Sur; porque en realidad, nuestro norte es el Sur. No debe haber norte, para nosotros, sino por oposición a nuestro Sur. Por eso ahora ponemos el mapa al revés, y entonces ya tenemos justa idea de nuestra posición, y no como quieren en el resto del mundo. La punta de América, desde ahora, prolongándose, señala insistentemente el Sur, nuestro norte (Joaquín Torres García)

Ontem à noite, no Teatro do Bourbon Country, Ana Prada lançou ao ar, com forte acento castelhano, palavras mais ou menos assim: “vir a Porto Alegre tem um pouco a ver com a canção Tierra Adentro. Afastar-se do mar, ir entrando. Somos muito parecidos [gaúchos e uruguaios]”. Os rostos, na platéia, se encheram de satisfação. A tônica do espetáculo PoA-Montevideo – Sin Fronteras foi essa: uma intensa tentativa de buscar semelhanças, identidades, transitar entre dois idiomas, conformar novos e fecundos espaços culturais pautados pelo intercâmbio e a generosidade.

Vitor Ramil (BR), Marcelo Delacroix(BR), Daniel Drexler(UY) e Ana Prada(UY), acompanhados por músicos gaúchos e uruguaios qualificadíssimos, desenvolveram maravilhosa performance, com arranjos muito bem resolvidos e um interessante revezamento dos cantores em trios e duetos. Para compor o espetáculo, cada artista escolheu duas ou três músicas do seu repertório que foram re-arranjadas para compor uma “sinfonia” comum, matizada por envolvente mescla de sotaques. Este show que ficará para a história, marca um momento diferenciado da produção cultural independente no Rio Grande do Sul.

Há anos, Vitor Ramil tem desenvolvido, junto com outros músicos, no Rio da Prata, projetos que cada vez mais abarcam novas propostas estetéticas e constituem-se numa perspectiva original para quem faz música no Estado. A tradicional barreira que as composições gaúchas encontram nos centros nacionais de produção cultural pode ser relativizada pelos circuitos de intercâmbio artístico que se entretecem sobre as fronteiras meridionais.

Muito mais do que uma estratégia de publicitários e grandes gravadoras, as novas dinâmicas de contato e interação entre rioplatenses e riograndenses refletem o interesse dos próprios artistas em promover um diálogo de ritmos concebidos como semelhantes sob diversos aspectos. Centro e periferia, no contexto da cultura brasileira, se esfumaçam diante das atuais tendências pressupostas pelo contato transnacional. Os gaúchos estão sabendo aproveitar-se da sua condição de “fronteiriços” para formar conclaves ou referências alternativas do fazer musical no “fim dos fundos da América do Sul”. Isto é entusiasmante, porque alenta a diversificação do nosso repertório musical e sinaliza a emergência de outros horizontes para músicos jovens que buscam visibilizar sua arte e têm dificuldade (ou não querem) de disputar mercados esgotados como os de São Paulo e Rio de Janeiro.

Por fim, acho interessante ressaltar que em outros âmbitos da produção de saber e arte há iniciativas semelhantes àquela proposta por Vitor Ramil e seus “novos gaúchos”. Na academia, na moda e na gastronomia (campos tão díspares!) vemos mobilização no sentido de fomentar elos perenes que tornem possível a circulação de conhecimentos e técnicas no marco de espaços de legitimação não hegemônicos.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Milongas, compadritos e cadiueus: poética da instabilidade

Essa coisa do tango sempre me chamou muito a atenção. Sempre não. Desde uma pré-adolescência que, vez que outra, eu fazia questão de matizar com pitadas de melancolia. Melancolia é palavra chave para essa ousadia que vou plasmar nas linhas que seguem.

Lembro-me de quando, não sei exatamente por que, comentei com minha avó acerca do fascínio que a sinuosidade do tango dançado exercia sobre mim. Ela entusiasmou-se. Vieram-lhe à mente imagens dos anos quarenta e cinqüenta, quando certos porto-alegrenses se arriscavam a esboçar cadências tangueiras e boleirescas em bailes realizados sabe-se lá onde. A avó alentou-me numa tentativa inicial de aprender tango. Não tive muito êxito, uma vez que o corpo cansado da matriarca há tempos perdera aquela disciplina que o gênero rioplatense lhe havia imposto muitas décadas atrás. De todas as maneiras, fiquei entusiasmado com a perspectiva de converter-me num milongueiro. Anos depois, com Juliana, arriscamo-nos em nova empreitada tangueira. Desta vez, ajudados por uma anciã iniciadíssima nos ritmos boêmios das nostálgicas urbes do Prata. Chegamos a aprender alguma coisa, o suficiente para riscar quadrados e pêndulos no piso das milongas públicas de Montevidéu – o berço esquecido de La Cumparsita.

Hoje em dia, estou novamente distanciado do tango dançado. Faço questão, contudo, de manter-me identificado com a “atmosfera ideológica do tango”, um espaço subjetivo que inventei para mim a modo de refúgio. É das profundidades desse “rincón de mente (y demente)” que arranquei as conjeturas que amontôo a seguir.

Abundam hipóteses sobre a etimologia da palavra tango. Interesseiro que sou, opto por duas delas. Mesmo aparentemente contraditórios, os dois postulados que adoto para este texto dialogam profundamente entre si (pelo menos no plano da poesia). Há quem diga que “tango” é uma onomatopéia que remete ao som dos tambores africanos, instrumentos que compunham, primitivamente, a harmonia do tango. Aqueles que refutam esta proposição postulam que o tambor nunca conformou o repertório de instrumentos utilizados para produzir a música tango. Inicialmente, utilizava-se flauta, violão e violino. Depois se introduziu o bandoneón alemão. Outra suposição, esta mais aceita, sugere que a palavra tango teve origem no Oeste da África e aludia a “lugar fechado”, ou seja, lugar onde se dançava em área fechada. Pois bem, as duas teorias nos dizem a mesma coisa por caminhos diferentes: o tango tem origem (ou, pelo menos, influência) africana e chegou à Argentina através do Oceano Atlântico. Os primeiros “tangos” (aqui me refiro ao lugar de dança e não a música em si) eram, provavelmente, espaços de ritualização, pela música, de uma liberdade impossível no plano das relações de trabalho escravistas.

Desde seus primórdios, o tango se prestou a resolver eficazmente algumas contradições. A antinomia brutal entre negro escravo e branco livre, que sustenta uma época marcada pela profunda hierarquização e racialização da sociedade argentina, era transitoriamente resolvida – ou transposta – nos tangos (me refiro, novamente, a lugares). Os encontros festivos dos negros, calcados na melancolia e nos ritos de atualização identitária, permitiam a construção da dignidade e da solidariedade entre grupos subalternos. Mais ainda, garantiam a existência social dos negros para além dos ditames escravocratas.

Promovo, agora, um trânsito geográfico e cultural que me arremessa ao Mato Grosso (Brasil), mais especificamente à sociedade Cadiueu. Espero que os seguintes desdobramentos deste escrito me poupem do adjetivo de “descabelado”. Tentarei manter um mínimo de coerência, acreditem. Vejamos como me viro.

Os índios cadiueu constituem uma sociedade rigidamente hierarquizada, composta por castas endogâmicas e absolutamente despojada de qualquer subdivisão horizontal. Lévi-Strauss chegou a afirmar que o modelo societário cadiueu favorece uma espécie de racismo às avessas, induzindo os indígenas a buscarem cônjuges em outras tribos mediante o rapto de mulheres ou a incorporação de prisioneiros, por exemplo. Outras tribos da região, como os Mbaiá, também possuem uma estrutura de castas semelhante a dos cadiueu. Entretanto, o problema da ultra-hierarquização que pode colocar em xeque a própia existência do grupo social, foi por eles resolvido através da introdução de um sistema de metades exogâmicas que se sobrepõe às castas e cria fluxos de reciprocidade. Os cadiueu, mais conservadores, não lograram contornar a rigidez das castas, mas foram sensibilizados pelas alternativas colocadas em prática por grupos étnicos vizinhos. O remédio que lhes faltou para gerar soluções propriamente sociológicas às suas contradições, não podia escapar-lhes por completo. “E, já que não podiam tomar consciência dele e vivenciá-lo, puseram-se a sonhá-lo (...) de forma transposta e, na aparência, inofensiva: em sua arte” (palavras do velho Lévi-Strauss). A arte praticada pelas mulheres cadiueu é sedutora e complexa, expressão da busca de uma sociedade por instituições que poderia ter, não fossem os impedimentos materializados nos seus interesses e crenças. A pintura corporal cadiueu opõe, harmoniosamente, formas curvilíneas e duros ângulos, registrando, metaforicamente, a dualidade entre reciprocidade e hierarquia que eles sequer puderam consolidar na dimensão da consciência e da vida social.

Feita esta aparente interrupção na linearidade do texto, me dedico, agora, esboçar elos e aparar arestas. Antes que nada, regressemos à Buenos Aires de meados e século XIX e inícios do século XX. Naquela época, a metrópole argentina (única em um país de “pueblos”), fervilhava com a chegada de enormes contingentes imigrantes procedentes da Itália e da Espanha. O cercamento dos campos (“alambramiento”) e um subseqüente êxodo rural inundaram os cortiços com gauchos e toda sorte de mestiços que ganhavam a vida traficando gado e peles nas enormes pradarias que se estendiam ao longo de boa parte da província. Negros recém libertos vagavam pelas ruas em busca de empregos pouco valorizados nos frigoríficos da capital ou em outros redutos duma indústria nascente. Foi este o contexto social de surgimento do tango enquanto gênero musical. Era a época embrionária do tango, de acordo com classificação proposta pela ousada antropóloga Maria Eugenia Rosboch. Negros, gauchos e imigrantes plasmaram, nos arrabaldes, um ritmo que repercutiria intensamente em diversas esferas da sociedade argentina pelos seguintes 60 anos.

A Argentina, entre os séculos XIX e XX, era profundamente hierárquica e eurocêntrica. Os discursos oficiais sobre higienização e nacionalidade orbitavam em torno da paranóia do branqueamento. O problema indígena estava sendo paliado por meio do etnocídio e o escurecimento de Buenos Aires seria combatido com a imigração de europeus. Dois coelhos mortos numa cajadada: indústria abastecida de mão de obra e ruas abarrotadas de caucásicos. O imigrante, no entanto, da mesma forma que negros e gauchos, viu frustradas suas possibilidades de inserção/ascensão social. Sobre ele pairava a inabalável figura do criollo, esse descendente de espanhóis em primeira ou segunda geração que concentrava poder econômico e político, instilando-se no plano das representações coletivas como protótipo do homem ideal, da realização completa da masculinidade e, por conseguinte, da cidadania. Eventualmente, um punhado de investidores estrangeiros ou novos capitalistas argentinos conseguia driblar essa efígie pujante do criollo, inventado modelos alternativos e quase-legítimos de hombridade. Eram exceção. Durante décadas tudo o que divergia do criollo tornava-se dissidente e estava mais ou menos fadado à frustração. O problema é que os dissidentes formavam maioria. São impressionantes as façanhas da dominação!

O tango original se constrói com base numa série de incertezas. Estas incertezas eram as mesmas que permeavam os próprios sujeitos que foram artífices daquele gênero musical. O gaucho, proto-etnia fracassada (nas palavras exageradas de Darcy Ribeiro), fruto da índia estuprada pelo filho do fidalgo, é um emblema “daquilo que não pôde ser”, da condição dolorosa de bastardo da sociedade colonial e eco perdido da época de florescimento das populações aborígenes. Meio homem, marginal das masculinidades hegemônicas. Os negros e os imigrantes se identificam com o gaucho pela melancolia que carregam. Os primeiros preservam em seu imaginário uma vinculação com a África mítica e purificada e não abdicam de suas redes de sociabilidade; nem podem fazê-lo porque é através delas que lograrão uma tênue participação na esfera pública, marcada sempre pelo estigma da raça. Os segundos trazem consigo línguas e costumes que, ao contrário de serem anulados, começam a pautar a própria forma de falar nas periferias, convertidas em verdadeiros guetos que desmentem em larga medida a ilusão de prosperidade e inclusão pugnada pelo sonho de emigrar para as Américas. Marta Savigliano, que propôs a hipótese do “proceso de colonización”, concebe o tango como uma dança melancólica, uma forma de amnésia que encerra um significado amargo e profundo cuja raiz se encontra no processo de colonização da sociedade aborígene e no agitado processo de imigração europeu que marca as três últimas décadas do século XIX. Pronto! Está preparado o terreno para reintroduzir os cadiueu nessa trama. Antes, contudo, lanço ao ar mais algumas afirmações que, dirão vocês, têm muito de inconseqüência. Pode ser. Por sorte este é um esforço poético e não analítico.

Os homens que construíram o tango em sua época embrionária eram machos subalternos, fantasmas desprezíveis à sombra daquilo que se entendia por cavalheiro. Estavam inseguros. Mesmo o feroz compadrito (espécie de cafetão que bancava as milongas e gozava de certo carisma nos círculos sociais “arrabaleros”) era narrado, freqüentemente, como “refém” da sua passionalidade, envolvendo-se em dramas amorosos que, não raro, invertiam os papéis sexuais tidos como ideais. Aqui, novamente, o tango (desta vez convertido em música), se presta à resolução de contradições. Da mesma forma que os cadiueu projetaram na arte a solução de aspectos conflitantes da sua vida em sociedade, o homem tangueiro plasmou nas letras e cadência do tango as soluções – ideais – que socialmente jamais poderia acessar. Julie Taylor, sem chegar tão longe quanto eu (afinal, ela é uma respeitada antropóloga estadunidense, tendo sido orientanda do próprio George Marcus), assume que as letras de tango e a coreografia da dança mostram a agressividade e violência do homem frente à passividade da mulher, atitude que contrasta com a insegurança característica na identidade do tangueiro. Estruturalistão? Não se precipitem! Dêem-me mais uma chance. Como havia prometido, esbocei elos, correlações, mas ainda não aparei arestas. As últimas linhas do texto estão dedicadas a tal tarefa.

Os cadiueu incorporaram uma dualidade (horizontalidade e verticalidade = reciprocidade e hierarquia = linhas sinuosas e duros ângulos) que tribos vizinhas haviam implementado para resolver o ultra-seccionamento grupal; mas sua apropriação desta dualidade inevitável não se realizou “sociologicamente”. Materializou-se em arte. Os tangueiros, ao elaborar seu repertório inicial de letras e ritmos, dialogaram com padrões hegemônicos e trataram de reproduzi-los – ajustando e transformando códigos aristocráticos às sensibilidades do seu grupo social e compondo assim uma lírica caracterizada pela dualidade tão típica da moralidade moderna –, mas, como já foi dito, só puderam alcançá-lo no plano mais formal do gênero tango. Sua experiência de classe, suas vivências cotidianas, a agência inevitável das mulheres que os circundavam, decretaram a impossibilidade de concretização daquela performance da masculinidade ideal para além das representações cristalizadas em letras e passos musicais. As classes populares (o tango, em seu período embrionário era uma manifestação da cultura popular), consciente ou inconscientemente, podem tanto reproduzir e ajustar como impugnar caracteres da cultura legítima. Essas dinâmicas estão marcadas, logicamente, por conflitos de “fronteira” ou disputas internas. Em que medida, por exemplo, as mulheres que circulavam (e dançavam) nas milongas aceitaram, negociaram ou rechaçaram as noções de masculinidade embutidas nas letras e na dança do tango? Maria Eugenia Savigliano, olhando para as milongas contemporâneas, sugere que a incorporação simbólica do tango à identidade nacional pode ter seu conteúdo ressignificado, em particular quando ela estuda a performance da dança, onde observa que se estabelecem relações marcadas por “um principio de equidade de gêneros mais do que de dominação masculina”.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

O que tanto encomoda nesse "desenvolvimento sustentável"?

O reitor da UFRGS, eleito em 2008, na esteira do apoio político do PT gaúcho, retribuiu o favor com sobras na noite do dia 27 de agosto, em Porto Alegre.
Constatei uma certeza, construída com zelo e reflexão, mas que se tornou gritante nesse momento: a UFRGS perdeu completamente sua autonomia (claro que nem de longe o curso de Ciências Sociais algum dia tivera, na sua engenharia, pretensões frankfurtianas).
O marxista István Mészáros veio, hoje, á Porto Alegre, defender um discurso pífio sobre a crise econômica internacional. Nem de perto demonstrou a erudição presente no brilhante livro "A Teoria da Alienação em Marx", que estou lendo para uma cadeira de Economia.
A palestra ocorreu no Salão de Festas da Reitoria da Universidade. Como numa armação, seu enfoque privilegiou um tema que definitivamente se mostrou não ser de sua especialidade: a crise ecológica. Disse, conforme o tradutor simultâneo, que "não haverá revolução verde, sem primeiro a revolução vermelha" (seguido de aplausos do grande público). Ora, preciso dizer que ele veio com o intuito de conter o "efeito Marina Silva"?! Com toda a clareza foi um discurso arquitetado visando manter um setor da militância potencialmente desertor do PT. Posso estar enganado? Essa é a minha opinião, embora não tenha citado ela em seu discurso, o mesmo não ocorreu quanto citou o presidente Lula e o programa de "combate à fome". Achei estranho que ele não utilizou, uma única vez, o termo "sustentável" que faz parte do jargão político da Marina. Defendeu, por diversas vezes, um nebuloso desenvolvimento "responsável".
A palestra faz parte de uma série de outras que ele está fazendo nas Universidades Federais. Fico imaginando a repercussão política disso, aqui, e em outras universidades. É preocupante a estrutura corporativa de alguns segmentos da sociedade! No fim de tudo, aquele senhor bem trajado, mais pareceia estar mantendo interesses políticos do status quo, que por sua vez são sustentados por interesses econômicos e que, novamente, sustentam toda a estrutura ideológica do Estado.

domingo, 23 de agosto de 2009

Vitória do melhor argumento em Porto Alegre!

Com ampla maioria (18.212 votos), o "não" venceu, hoje, a consulta pública sobre o Pontal do Estaleiro. A consulta decidiu que, no Pontal do Estaleiro (localizado na orla do Guaíba), não poderão ser construídas edificações residenciais, somente comerciais.
Um fato que merece destaque foi a cobrança de passagens pelas empresas de transporte público em pleno dia de votação. A participação minoritária (22.574 de votos) se deve também a esse verdadeiro impedimento para um dia de domingo, quando a tarifa é integral para todos. Por isso, chamo a atenção para que as próximas consultas sejam aperfeiçoadas dando continuidade ao processo de participação política.
No jornal de domingo constava uma carta com os argumentos do "não" e outra com os do "sim".
Analisei os dois com a pressuposição da possibilidade de ambos teriam conteúdos verdadeiros desde seu ponto-de-vista e interesses distintos.
O primeiro, escrito por Paulo Guarnieri, fez um balanço ambiental, social e econômico da situação, privilegiando a incorporação de todos interesses envolvidos, inclusive os econômicos. O segundo, escrito por Filipe Wels, se deteve apenas a contradizer as informações do primeiro, acusando o adversário de "ideológico", "doutrinário" e "irracional". Seu apelo principal era o progresso da cidade! Ora, como nos ensina o filósofo Habermas, ao denunciar a lógica do debate hostil, "a fim de, em geral, poder verificar a enunciação de outra pessoa quanto à sua verdade, correção normativa e autenticidade, em primeiro lugar precisam ser aceitas precisamente estas pretensões de verdade, precisa ser aceita a racionalidade do oponente. O exame de suas enunciações pode, entretanto, ter um resultado negativo".
Um discurso ancorado na hostilidade estaria fadado a recusa democrática.
O nível de informação e princípios adotados pelos representantes do "não" demonstra que os valores e interesses puramente econômicos são estranhos aos princípios democráticos. Podemos retomar novamente ao filósofo Jürgen Habermas. A democracia deliberativa envolve além dos recursos dinheiro e poder, o terceiro recurso que é a solidariedade formada comunicativamente.
Após o resultado, um acesso de fúria e autoritarismo chegou a tal ponto que um jornalista da capital, defensor e ideólogo da posição, não derrotada, mas rechaçada, disse em seu blog que "Ecologistas xiitas fundamentalistas guascas vencem referendo em Porto Alegre". Logo em seguida, talvez por algum resto de equilíbrio, ou por crítica recebida, substituiu a mensagem por uma crítica precipitada ao pouco comparecimento às urnas. Digo que foi precipitada, pois não observou a informação referida acima sobre a cobrança de passagens.
A dicotomia política de esquerda e direita ainda nos diz muito, especialmente em torno do sistema político, tais como mídia, esfera pública e interessados da sociedade civil em geral.
Compartilho com Habermas uma confiança nos procedimentos democráticos e comunicativos para deter a colonização do mundo da vida pelo sistema econômico. Claro que se trata apenas de um assunto dentre os muitos a ser discutidos na cidade, para não dizer no RS. No estilo do Orçamento Participativo, essa foi uma vitória da esfera pública e do melhor argumento!

sábado, 22 de agosto de 2009

Autoritarismo político no RS - que venha a Anistia Internacional!

Nenhum sistema oculta melhor os desmandos do autoritarismo que a própria democracia. Depois do golpe de Estado em Honduras, os olhos da imprensa e dos organismos internacionais de defesa dos direitos humanos se voltaram para a republiqueta centro-americana e encontraram uma realidade chocante: repressão militar em pleno século XXI! (Ver vídeo “En Honduras no pasa nada”: http://www.youtube.com/watch?v=DRdpvLSjKdU). Ocorre que há anos as oligarquias locais têm sido brutais e intransigentes. Mas antes honduras era "democrática".

A diferença entre Honduras e RS é que, naquele país o povo não votou em quem, agora, o espanca nas ruas. Aqui sim. O Rio Grande do Sul encontra-se, atualmente, em situação crítica. Um governo reacionário, abalado pela crise política está revidando contra a população e atacando garantias democráticas. Assistimos no Estado um claro processo de criminalização dos movimentos sociais. Foram presos pela Brigada Militar dois dirigentes sindicais e uma vereadora de oposição que participavam de protesto em frente à casa da Governadora Yeda Crusius. Nesta mesma ocasião jornalistas foram agredidos e, posteriormente, impedidos de acessar a área judiciária do Palácio da Polícia. A ação policial foi desmedida e a prisão de lideranças sociais soou como claro recado: nas esferas executivas do Estado do Rio Grande do Sul, promove-se uma dantesca promiscuidade entre os conceitos de militante político e meliante.

Há menos de duas semanas, ônibus com manifestantes que vinham do interior do Estado para realizar protesto em frente ao Palácio Piratini (sede do governo Estadual) foram barrados pela Brigada Militar antes de chegar à Porto Alegre. Ato seguido, realizou-se revista dos passageiros e apreensão de cartazes e faixas que continham “mensagens agressivas à pessoa da governadora”. As demandas dos movimentos de oposição não puderam nem sequer chegar às ruas, reverberar na praça pública. Censura. Não vejo outra maneira de definir tal situação. A polícia foi investida do direito de realizar juízos morais para censurar material político. Completamente anormal!

Ontem, dia 21 de agosto, novamente o Estado foi palco de autoritarismo. A Brigada Militar, ideologizada pelo Governo do Estado e pela Secretaria de Segurança, assassinou a tiros um colono sem-terra durante ação de desocupação da fazenda Southall, em São Gabriel (um dos municípios brasileiros com maior concentração de latifúndios: memória viva do subdesenvolvimento). Indícios sugerem que o confronto entre militantes do MST e BM já estava apaziguado quando o crime foi cometido. O colono, alvejado com arma de grosso calibre, estaria de costas no momento do disparo.

A repressão política tende a crescer na medida em que este governo fracassado e ilegítimo (já que fruto da corrupção e do caixa 2) se sinta mais acuado. Para garantir a manutenção do espírito democrático em terras gaúchas, me pergunto se não seria a hora de fazer denúncia à Anistia Internacional.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Percepções sobre a esquerda oriental (ou "no Sul ainda existe esquerda e direita II")

Bastou assentir com a cabeça quando nos perguntaram se éramos da imprensa. Ato seguido, alojamo-nos facilmente em área reservada para jornalistas no plenário da Frente Ampla (Encuentro Progresista – Frente Amplio – Nueva Mayoría, maior partido de esquerda em atividade no Uruguai) organizado em Montevidéu. Em nenhum momento se fez patente aquele típico afã por inspecionar, exigir credenciais, apartar, diferenciar e seccionar, que marca os atos políticos dos inchados partidos brasileiros. Concorrido mesmo era estar na platéia, ter em mãos as cédulas que ratificam a democracia partidária. Naquela manhã fria de 11 de julho de 2009, os delegados frenteamplistas oficializariam a fórmula do seu partido para as eleições presidenciais uruguaias deste ano.

Pepe Mujica (na foto) tinha seu nome confirmado na chapa, pois ganhara as eleições internas celebradas um mês antes. Político cebola, como ele mesmo se definiu certa feita, soube “descascar-se” – quando não foi descascado – de pigmentos do momento e da seita para construir lealdades de amplo espectro das quais extraiu um saldo final positivo: consolidou-se como nome representativo de uma esquerda uruguaia que se considera apta para, novamente, falar em projeto nacional e ambicionar a dianteira das mudanças sociais no largo prazo.

Interessante metáfora a da cebola! Na medida em que se descasca, ela perde volume unitário – leia-se individual –, cabe com facilidade numa cesta cheia. No entanto, ao passo que diminui, a cebola libera de forma mais intensa uma substância característica que, dada a radicalidade da sua natureza de sumo profundo, sensibiliza aqueles rostos mais impávidos. É a cebola como via para a unidade!

Sucessivas vezes, escutando as falas de Mujica e, posteriormente, do seu companheiro de chapa, Astori, senti fortuitos arrepios. Mesmo estando eu relativamente distante de todo o espaço mental concernente às agremiações de esquerda no Uruguai, as intervenções dos dois líderes frenteamplistas me afetaram. Em parte, isso aconteceu porque o trabalho de campo que realizei na cidade de Montevidéu colocou-me em contato com problemas sociais que o programa da esquerda se propõe a interpretar e enfrentar. No Brasil, contudo, eu já havia adquirido outra capacidade típica daqueles que se identificam com forças sociais de esquerda: emocionar-se ao ouvir as máximas políticas que convertem a utopia em instrumento efetivo de intervenção na vida coletiva dos homens.

A esquerda, a direita e as ambigüidades

Após breves diálogos – estes sim possibilitados pela minha condição de “imprensa” – com alguns ministros do atual governo da F.A., nos retiramos desse primeiro contato direto com a mobilização eleitoral dos progressistas orientais. Ficou a impressão de que tudo aquilo – os discursos, as cédulas dos delegados, as palavras de ordem – se tratava de um ritual direcionado à afirmação do patrimônio simbólico da esquerda. Num contexto político como o uruguaio, onde a polarização é constante e a possibilidade de coalizões inter-partidárias reduzida, conformar referenciais estáveis têm grande importância estratégica. Ao passo que no tempo da repressão política, esta tarefa era complicada para a esquerda e razoavelmente fácil para os partidos tradicionais (à época, majoritariamente auto-designados de direita), durante a abertura democrática o quadro inverteu-se. Um desengessamento da esfera pública – ou a desenterdição da ágora – permitiu à esquerda recuperar velhos referentes e fazer repercutir amplamente suas sagas, retomando, assim, compromissos políticos que jaziam numa longa orfandade.

Os movimentos sociais e sindicais, em sua interlocução com a Frente Ampla, garantiram a manutenção e vigência de bandeiras políticas que, com o crescimento eleitoral da esquerda a partir de meados da década de 80, começaram a se fazer mais presentes nas esferas legislativas e executivas. A F.A., graças a sua interface com os movimentos, pôde constituir uma matriz programática mais ou menos refratária às ambigüidades características da retórica em voga nos partidos tradicionais (principalmente o Partido Blanco). Ditas ambigüidades, da mesma forma que os desgastados bordões conservadores embalados ou não pelo estribilho do laissez faire, aparentemente não cativaram o eleitorado. Por outro lado, é cada vez mais difícil sustentar a “dignidade histórica da direita” perante setores sociais munidos de certa consciência crítica e abalados pelos traumas do pós-ditadura e do pós-crise. Tem bastante de paradoxal na situação dos partidos tradicionais no Uruguai. Se a confusão dos propósitos políticos não é bem aceita pela cidadania, tampouco o discurso “durão” de direita goza de muito prestígio no atual cenário político nacional.

Falar de esquerda e direita no Uruguai faz sentido e pode ser muito útil, pelo menos para a esquerda, pois a Frente Ampla, por agora, não se defronta com o mesmo paradoxo que assola blancos e colorados. Daí que tanto militantes como dirigentes frenteamplistas utilizem intensamente esta terminologia, seja para situar-se na acirrada cartografia partidária uruguaia, seja para informar o viés dos seus projetos aos aliados no movimento social e sindical. A Frente Ampla é de esquerda, dizem os frenteamplistas. Sindicalistas e outros militantes sociais confirmam para logo acrescentar: é de esquerda e deve fazer avançar nossas demandas nas esferas institucionais. Significante e significado se fundem nesta concertação. Eis um pilar da atual representatividade da FA.

Experiência histórica e ação no agora

Dias após a plenária frenteamplista, visitamos a sede do Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros (MLN-T) que, na década de 60, realizou uma importante mobilização armada contra o autoritarismo estatal e pelo socialismo. Atualmente, boa parte dos dirigentes históricos do MLN-T encontra-se vinculada à Frente Ampla através do majoritário Movimento de Participação Popular (MPP).

Durante a visita, conhecemos Celia, ex-guerrilheira que nos apresentou o pequeno acervo histórico dos Tupamaros e comentou sua experiência de combatente. Com lágrimas nos olhos e convencida de nossa ingenuidade juvenil, esta velha militante remontou cenas da luta armada e do cárcere. Reviveu as batalhas urbanas em que o tiro era para matar; percorreu antigos calabouços de merda e mortos; revisitou salas de tortura onde luxo era não ser estuprada. Depois se lembrou de quando os Tupamaros julgaram e executaram os professores de tortura que a CIA mandava ao Uruguai para adestrar militares locais na milenar arte de trucidar corpos. Descreveu a falta de escrúpulos das Forças Armadas em sua guerra suja. Valia tudo para fanatizar a tropa contra a ameaça terrorista. Soldados mortos em combate eram cuidadosamente recolhidos, sentados em caminhões com garrafas térmicas e cuias de mate nas mãos para dar a entender que haviam sido executados covardemente pelos ferozes guerrilheiros: artifício barato que alvoroçava milicos e ideologizava a classe média.

Distribuir as riquezas e a terra, estabelecer monopólio público de bens básicos, combater a exclusão independente da forma como se apresente, são demandas que os movimentos sociais uruguaios tratam de sustentar e atualizar. Os antigos membros do MLN-T fazem questão de manter-se identificados com tais aspirações, conferindo-lhes um pedaço de passado que, ao ser validado e positivado diante da sociedade, pode dar mais potência ao discurso das esquerdas. Para Célia, na atual conjuntura política, “las armas cambiaron”, mas os fins seguem os mesmos. A Frente Ampla, aliança madura de forças progressista com trajetórias particulares e ponto de referência para muitas organizações da sociedade, apresenta-se como espaço criativo (certamente não o único, mas possivelmente o mais abarcador) de invenção e, por isso mesmo, realização, das experiências de esquerda no tempo histórico. Só no tempo histórico gestas singulares podem encadear-se para tomar a forma dum processo emancipatório que, uma vez concebido, torna-se capaz de preservar a coerência dos propósitos de uma força política.

Os Tupamaros, autorizados a reencontrar-se de forma legítima com sua experiência passada e habilitados a disputar os sentidos possíveis da guerra que declararam ao Estado (“o habrá Patria para todos o no habrá Patria para nadie”), têm competência para jogar importante papel num esforço coletivo de “contar e recontar a esquerda”. Exercício este que tende a permitir a concatenação das temporalidades de diversos grupos, garantindo, assim, o encontro de subjetividades necessário ao estabelecimento de um campo semântico estável para o desenvolvimento dos projetos das esquerdas uruguaias.

sábado, 11 de julho de 2009

Já faz um tempo que não vejo o sol, aqui na capital paulistana parece que o mundo é cinza. Mas nada mais típico que uma manhã de sábado oscilando entre o nublado e o chuvoso; aqui, na terra dita da garoa, vejo a precipitação de fuligem em todos os lugares, inclusive no limpador do vidro do carro que espalha num borrão cinza escuro toda a fuligem sobre o vidro. Mas sempre existe aquele sentimento intimista de que a chuva parece oferecer mais descanso que o sol, que dormir com barulho da chuva é mais gostoso etc. Mentira! essa noite acordei três vezes por causa da chuva: a primeira para ver se tinha roupa estendida no varal, a segunda para ver se eu havia fechado a janela do carro e a terceira porque o barulho da água nas poças que haviam se formado era tão alto e parecia tão perto que pensei que algum cano de minha casa estivesse vazando. Coitado de mim, tenham pena. Talvez essa seja só uma desculpa que encontrei, porque no fundo, em algum lugar eu devo ter sentido o que aconteceu... uma aluna minha morreu na madrugada de hoje. Na minha curta experiência como professor acho normal passar por situações novas a cada dia, cada bimestre, mas se me fosse dado escolher esse tipo de experiência eu a deixaria para o final. O velório dela é hoje, os professores vão, não todos, porque a Morte está compensando e uma das professoras, grávida, está sob observação no hospital porque corre o risco de abortar.
Aluna minha. Seu nome na lista de chamada, ainda está lá. Lembra de quando éramos nós que estávamos na sétima/oitava série e abstraíamos sempre a presença do professor na sala, ou incluíamos ele nas conversas, ou até prestávamos atenção na aula? Pois é, agora sou eu quem está ali na frente, fazendo o quê eu não sei, mas estou lá e os alunos gostam e os alunos agradecem, mas ela... C. falava bastante, era muito alegre e risonha. Tinha boa letra... Engraçado saber tanto da personalidade das pessoas sem saber muita coisa a respeito de suas vidas. Sempre sutil é essa relação, mas muito rica, ainda mais quando sincera. E o nome dela ainda na lista de chamada, para sempre, como os outros, mas não mais com os outros.
Se estou triste? sim, sem dúvida. Mas me entristeço mais ainda quando penso na tristeza dos outros vinte e um alunos. Como será que irão reagir? As amigas vão chorar.
E agora olho para fora, através da janela. Chove. Um pensamento que constantemente me assombra é quando tento imaginar quantas crianças estão chorando neste momento, quantas prendem o choro... Hoje é um bom dia para chorar aqui em São Paulo, o clima feio e frio, essa chuva fora de época. Hoje é um bom dia para parar um pouco (mesmo porque com a chuva não conseguimos ir a muitos lugares) e pensar.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

O que se pode fazer com as palavras?
MUNDO.
E gostaria de dizer tantas coisas, tantos mundos, que de tanto querer me perco e fico presa do lado de dentro das palavras, sem conseguir abrir suas janelas.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Prosa psicanalítica

Estava sentada esperando ônibus, tentando me livrar de um acesso de tosse que quase fez meus óculos caírem. Quando fui arrumá-los vi dois olhos enormes e pretos, brilhantes, me fitando. Levei um susto. Prestei atenção para tentar descobrir o que estava vendo, de onde vinham aqueles olhos. E espantada vi que eram os meus próprios olhos refletidos de uma maneira muito estranha nos meus óculos de sol. Estavam escuros e enormes, a lente os aumentava e eu podia ver até os detalhes da pele ao redor.
Passado o estranhamento inicial, comecei a brincar com os reflexos estranhos, e lembrei de uma música: “Hello, mirror/So glad to see you my friend/It's been a while...”, e de uns versos do Fausto: “Nunca imaginei-me assim,/vendo a mim mesmo, tudo.”.
Comecei então a pensar (tempo fértil, este, das paradas de ônibus) nos olhos que nos olham. São muitos, mas há um que faz toda diferença e que chega quase a ter controle sobre nós.
Este é o Outro. Não o conhecemos, mas imagino que deva ser uma pessoa dessas de humor ácido, daquelas que riem com os olhos (os sorrisos dos olhos são os piores, ou os melhores), ironicamente, daquilo que tememos e desejamos, além de rir da imagem que tão difícil e cuidadosamente construímos para todos os outros, inclusive o Outro.
E o Outro ri porque sempre sabe de tudo que se passa conosco, e nos faz transparente com apenas um olhar. Se temos alma, ele a vê, e se achamos que não temos, ele dá aquele sorriso-olhar que nos lembra da nossa incapacidade de saber das coisas mais importantes, como almas, amores e sentidos de vida.
O Outro é onipresente.
Mas não se pode simplesmente chegar do seu lado e chamá-lo para um acerto de contas, perguntando cara a cara porque afinal ele não pára de prestar atenção no que fazemos/sentimos/pensamos, porque ele também não sabe o propósito último deste seu olhar que nunca cansa. E provavelmente, se lhe perguntássemos, responderia com outro sorriso-olhar sarcástico, debochando das nossas vãs tentativas de constituir nossa personalidade forte e livre de tantas influências e, claro, olhares.
Seu maior truque é transformar-se. Disfarça-se de qualquer pessoa que queira. Por isso às vezes conseguimos dar alguns nomes a Ele. Mas não se enganem, no final é sempre Ele a olhar. E a julgar. E a saber. E a sorrir.
Minha única esperança é que o Outro também tenha um ponto fraco. Algo que eu possa olhar. Quero ver se Ele suportaria ver-se como eu me vi nos meus óculos, ver-se de fora. E conviver com isso depois. E principalmente, falar sobre este olhar que nos faz tão fracos.