quinta-feira, 27 de agosto de 2009

O que tanto encomoda nesse "desenvolvimento sustentável"?

O reitor da UFRGS, eleito em 2008, na esteira do apoio político do PT gaúcho, retribuiu o favor com sobras na noite do dia 27 de agosto, em Porto Alegre.
Constatei uma certeza, construída com zelo e reflexão, mas que se tornou gritante nesse momento: a UFRGS perdeu completamente sua autonomia (claro que nem de longe o curso de Ciências Sociais algum dia tivera, na sua engenharia, pretensões frankfurtianas).
O marxista István Mészáros veio, hoje, á Porto Alegre, defender um discurso pífio sobre a crise econômica internacional. Nem de perto demonstrou a erudição presente no brilhante livro "A Teoria da Alienação em Marx", que estou lendo para uma cadeira de Economia.
A palestra ocorreu no Salão de Festas da Reitoria da Universidade. Como numa armação, seu enfoque privilegiou um tema que definitivamente se mostrou não ser de sua especialidade: a crise ecológica. Disse, conforme o tradutor simultâneo, que "não haverá revolução verde, sem primeiro a revolução vermelha" (seguido de aplausos do grande público). Ora, preciso dizer que ele veio com o intuito de conter o "efeito Marina Silva"?! Com toda a clareza foi um discurso arquitetado visando manter um setor da militância potencialmente desertor do PT. Posso estar enganado? Essa é a minha opinião, embora não tenha citado ela em seu discurso, o mesmo não ocorreu quanto citou o presidente Lula e o programa de "combate à fome". Achei estranho que ele não utilizou, uma única vez, o termo "sustentável" que faz parte do jargão político da Marina. Defendeu, por diversas vezes, um nebuloso desenvolvimento "responsável".
A palestra faz parte de uma série de outras que ele está fazendo nas Universidades Federais. Fico imaginando a repercussão política disso, aqui, e em outras universidades. É preocupante a estrutura corporativa de alguns segmentos da sociedade! No fim de tudo, aquele senhor bem trajado, mais pareceia estar mantendo interesses políticos do status quo, que por sua vez são sustentados por interesses econômicos e que, novamente, sustentam toda a estrutura ideológica do Estado.

domingo, 23 de agosto de 2009

Vitória do melhor argumento em Porto Alegre!

Com ampla maioria (18.212 votos), o "não" venceu, hoje, a consulta pública sobre o Pontal do Estaleiro. A consulta decidiu que, no Pontal do Estaleiro (localizado na orla do Guaíba), não poderão ser construídas edificações residenciais, somente comerciais.
Um fato que merece destaque foi a cobrança de passagens pelas empresas de transporte público em pleno dia de votação. A participação minoritária (22.574 de votos) se deve também a esse verdadeiro impedimento para um dia de domingo, quando a tarifa é integral para todos. Por isso, chamo a atenção para que as próximas consultas sejam aperfeiçoadas dando continuidade ao processo de participação política.
No jornal de domingo constava uma carta com os argumentos do "não" e outra com os do "sim".
Analisei os dois com a pressuposição da possibilidade de ambos teriam conteúdos verdadeiros desde seu ponto-de-vista e interesses distintos.
O primeiro, escrito por Paulo Guarnieri, fez um balanço ambiental, social e econômico da situação, privilegiando a incorporação de todos interesses envolvidos, inclusive os econômicos. O segundo, escrito por Filipe Wels, se deteve apenas a contradizer as informações do primeiro, acusando o adversário de "ideológico", "doutrinário" e "irracional". Seu apelo principal era o progresso da cidade! Ora, como nos ensina o filósofo Habermas, ao denunciar a lógica do debate hostil, "a fim de, em geral, poder verificar a enunciação de outra pessoa quanto à sua verdade, correção normativa e autenticidade, em primeiro lugar precisam ser aceitas precisamente estas pretensões de verdade, precisa ser aceita a racionalidade do oponente. O exame de suas enunciações pode, entretanto, ter um resultado negativo".
Um discurso ancorado na hostilidade estaria fadado a recusa democrática.
O nível de informação e princípios adotados pelos representantes do "não" demonstra que os valores e interesses puramente econômicos são estranhos aos princípios democráticos. Podemos retomar novamente ao filósofo Jürgen Habermas. A democracia deliberativa envolve além dos recursos dinheiro e poder, o terceiro recurso que é a solidariedade formada comunicativamente.
Após o resultado, um acesso de fúria e autoritarismo chegou a tal ponto que um jornalista da capital, defensor e ideólogo da posição, não derrotada, mas rechaçada, disse em seu blog que "Ecologistas xiitas fundamentalistas guascas vencem referendo em Porto Alegre". Logo em seguida, talvez por algum resto de equilíbrio, ou por crítica recebida, substituiu a mensagem por uma crítica precipitada ao pouco comparecimento às urnas. Digo que foi precipitada, pois não observou a informação referida acima sobre a cobrança de passagens.
A dicotomia política de esquerda e direita ainda nos diz muito, especialmente em torno do sistema político, tais como mídia, esfera pública e interessados da sociedade civil em geral.
Compartilho com Habermas uma confiança nos procedimentos democráticos e comunicativos para deter a colonização do mundo da vida pelo sistema econômico. Claro que se trata apenas de um assunto dentre os muitos a ser discutidos na cidade, para não dizer no RS. No estilo do Orçamento Participativo, essa foi uma vitória da esfera pública e do melhor argumento!

sábado, 22 de agosto de 2009

Autoritarismo político no RS - que venha a Anistia Internacional!

Nenhum sistema oculta melhor os desmandos do autoritarismo que a própria democracia. Depois do golpe de Estado em Honduras, os olhos da imprensa e dos organismos internacionais de defesa dos direitos humanos se voltaram para a republiqueta centro-americana e encontraram uma realidade chocante: repressão militar em pleno século XXI! (Ver vídeo “En Honduras no pasa nada”: http://www.youtube.com/watch?v=DRdpvLSjKdU). Ocorre que há anos as oligarquias locais têm sido brutais e intransigentes. Mas antes honduras era "democrática".

A diferença entre Honduras e RS é que, naquele país o povo não votou em quem, agora, o espanca nas ruas. Aqui sim. O Rio Grande do Sul encontra-se, atualmente, em situação crítica. Um governo reacionário, abalado pela crise política está revidando contra a população e atacando garantias democráticas. Assistimos no Estado um claro processo de criminalização dos movimentos sociais. Foram presos pela Brigada Militar dois dirigentes sindicais e uma vereadora de oposição que participavam de protesto em frente à casa da Governadora Yeda Crusius. Nesta mesma ocasião jornalistas foram agredidos e, posteriormente, impedidos de acessar a área judiciária do Palácio da Polícia. A ação policial foi desmedida e a prisão de lideranças sociais soou como claro recado: nas esferas executivas do Estado do Rio Grande do Sul, promove-se uma dantesca promiscuidade entre os conceitos de militante político e meliante.

Há menos de duas semanas, ônibus com manifestantes que vinham do interior do Estado para realizar protesto em frente ao Palácio Piratini (sede do governo Estadual) foram barrados pela Brigada Militar antes de chegar à Porto Alegre. Ato seguido, realizou-se revista dos passageiros e apreensão de cartazes e faixas que continham “mensagens agressivas à pessoa da governadora”. As demandas dos movimentos de oposição não puderam nem sequer chegar às ruas, reverberar na praça pública. Censura. Não vejo outra maneira de definir tal situação. A polícia foi investida do direito de realizar juízos morais para censurar material político. Completamente anormal!

Ontem, dia 21 de agosto, novamente o Estado foi palco de autoritarismo. A Brigada Militar, ideologizada pelo Governo do Estado e pela Secretaria de Segurança, assassinou a tiros um colono sem-terra durante ação de desocupação da fazenda Southall, em São Gabriel (um dos municípios brasileiros com maior concentração de latifúndios: memória viva do subdesenvolvimento). Indícios sugerem que o confronto entre militantes do MST e BM já estava apaziguado quando o crime foi cometido. O colono, alvejado com arma de grosso calibre, estaria de costas no momento do disparo.

A repressão política tende a crescer na medida em que este governo fracassado e ilegítimo (já que fruto da corrupção e do caixa 2) se sinta mais acuado. Para garantir a manutenção do espírito democrático em terras gaúchas, me pergunto se não seria a hora de fazer denúncia à Anistia Internacional.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Percepções sobre a esquerda oriental (ou "no Sul ainda existe esquerda e direita II")

Bastou assentir com a cabeça quando nos perguntaram se éramos da imprensa. Ato seguido, alojamo-nos facilmente em área reservada para jornalistas no plenário da Frente Ampla (Encuentro Progresista – Frente Amplio – Nueva Mayoría, maior partido de esquerda em atividade no Uruguai) organizado em Montevidéu. Em nenhum momento se fez patente aquele típico afã por inspecionar, exigir credenciais, apartar, diferenciar e seccionar, que marca os atos políticos dos inchados partidos brasileiros. Concorrido mesmo era estar na platéia, ter em mãos as cédulas que ratificam a democracia partidária. Naquela manhã fria de 11 de julho de 2009, os delegados frenteamplistas oficializariam a fórmula do seu partido para as eleições presidenciais uruguaias deste ano.

Pepe Mujica (na foto) tinha seu nome confirmado na chapa, pois ganhara as eleições internas celebradas um mês antes. Político cebola, como ele mesmo se definiu certa feita, soube “descascar-se” – quando não foi descascado – de pigmentos do momento e da seita para construir lealdades de amplo espectro das quais extraiu um saldo final positivo: consolidou-se como nome representativo de uma esquerda uruguaia que se considera apta para, novamente, falar em projeto nacional e ambicionar a dianteira das mudanças sociais no largo prazo.

Interessante metáfora a da cebola! Na medida em que se descasca, ela perde volume unitário – leia-se individual –, cabe com facilidade numa cesta cheia. No entanto, ao passo que diminui, a cebola libera de forma mais intensa uma substância característica que, dada a radicalidade da sua natureza de sumo profundo, sensibiliza aqueles rostos mais impávidos. É a cebola como via para a unidade!

Sucessivas vezes, escutando as falas de Mujica e, posteriormente, do seu companheiro de chapa, Astori, senti fortuitos arrepios. Mesmo estando eu relativamente distante de todo o espaço mental concernente às agremiações de esquerda no Uruguai, as intervenções dos dois líderes frenteamplistas me afetaram. Em parte, isso aconteceu porque o trabalho de campo que realizei na cidade de Montevidéu colocou-me em contato com problemas sociais que o programa da esquerda se propõe a interpretar e enfrentar. No Brasil, contudo, eu já havia adquirido outra capacidade típica daqueles que se identificam com forças sociais de esquerda: emocionar-se ao ouvir as máximas políticas que convertem a utopia em instrumento efetivo de intervenção na vida coletiva dos homens.

A esquerda, a direita e as ambigüidades

Após breves diálogos – estes sim possibilitados pela minha condição de “imprensa” – com alguns ministros do atual governo da F.A., nos retiramos desse primeiro contato direto com a mobilização eleitoral dos progressistas orientais. Ficou a impressão de que tudo aquilo – os discursos, as cédulas dos delegados, as palavras de ordem – se tratava de um ritual direcionado à afirmação do patrimônio simbólico da esquerda. Num contexto político como o uruguaio, onde a polarização é constante e a possibilidade de coalizões inter-partidárias reduzida, conformar referenciais estáveis têm grande importância estratégica. Ao passo que no tempo da repressão política, esta tarefa era complicada para a esquerda e razoavelmente fácil para os partidos tradicionais (à época, majoritariamente auto-designados de direita), durante a abertura democrática o quadro inverteu-se. Um desengessamento da esfera pública – ou a desenterdição da ágora – permitiu à esquerda recuperar velhos referentes e fazer repercutir amplamente suas sagas, retomando, assim, compromissos políticos que jaziam numa longa orfandade.

Os movimentos sociais e sindicais, em sua interlocução com a Frente Ampla, garantiram a manutenção e vigência de bandeiras políticas que, com o crescimento eleitoral da esquerda a partir de meados da década de 80, começaram a se fazer mais presentes nas esferas legislativas e executivas. A F.A., graças a sua interface com os movimentos, pôde constituir uma matriz programática mais ou menos refratária às ambigüidades características da retórica em voga nos partidos tradicionais (principalmente o Partido Blanco). Ditas ambigüidades, da mesma forma que os desgastados bordões conservadores embalados ou não pelo estribilho do laissez faire, aparentemente não cativaram o eleitorado. Por outro lado, é cada vez mais difícil sustentar a “dignidade histórica da direita” perante setores sociais munidos de certa consciência crítica e abalados pelos traumas do pós-ditadura e do pós-crise. Tem bastante de paradoxal na situação dos partidos tradicionais no Uruguai. Se a confusão dos propósitos políticos não é bem aceita pela cidadania, tampouco o discurso “durão” de direita goza de muito prestígio no atual cenário político nacional.

Falar de esquerda e direita no Uruguai faz sentido e pode ser muito útil, pelo menos para a esquerda, pois a Frente Ampla, por agora, não se defronta com o mesmo paradoxo que assola blancos e colorados. Daí que tanto militantes como dirigentes frenteamplistas utilizem intensamente esta terminologia, seja para situar-se na acirrada cartografia partidária uruguaia, seja para informar o viés dos seus projetos aos aliados no movimento social e sindical. A Frente Ampla é de esquerda, dizem os frenteamplistas. Sindicalistas e outros militantes sociais confirmam para logo acrescentar: é de esquerda e deve fazer avançar nossas demandas nas esferas institucionais. Significante e significado se fundem nesta concertação. Eis um pilar da atual representatividade da FA.

Experiência histórica e ação no agora

Dias após a plenária frenteamplista, visitamos a sede do Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros (MLN-T) que, na década de 60, realizou uma importante mobilização armada contra o autoritarismo estatal e pelo socialismo. Atualmente, boa parte dos dirigentes históricos do MLN-T encontra-se vinculada à Frente Ampla através do majoritário Movimento de Participação Popular (MPP).

Durante a visita, conhecemos Celia, ex-guerrilheira que nos apresentou o pequeno acervo histórico dos Tupamaros e comentou sua experiência de combatente. Com lágrimas nos olhos e convencida de nossa ingenuidade juvenil, esta velha militante remontou cenas da luta armada e do cárcere. Reviveu as batalhas urbanas em que o tiro era para matar; percorreu antigos calabouços de merda e mortos; revisitou salas de tortura onde luxo era não ser estuprada. Depois se lembrou de quando os Tupamaros julgaram e executaram os professores de tortura que a CIA mandava ao Uruguai para adestrar militares locais na milenar arte de trucidar corpos. Descreveu a falta de escrúpulos das Forças Armadas em sua guerra suja. Valia tudo para fanatizar a tropa contra a ameaça terrorista. Soldados mortos em combate eram cuidadosamente recolhidos, sentados em caminhões com garrafas térmicas e cuias de mate nas mãos para dar a entender que haviam sido executados covardemente pelos ferozes guerrilheiros: artifício barato que alvoroçava milicos e ideologizava a classe média.

Distribuir as riquezas e a terra, estabelecer monopólio público de bens básicos, combater a exclusão independente da forma como se apresente, são demandas que os movimentos sociais uruguaios tratam de sustentar e atualizar. Os antigos membros do MLN-T fazem questão de manter-se identificados com tais aspirações, conferindo-lhes um pedaço de passado que, ao ser validado e positivado diante da sociedade, pode dar mais potência ao discurso das esquerdas. Para Célia, na atual conjuntura política, “las armas cambiaron”, mas os fins seguem os mesmos. A Frente Ampla, aliança madura de forças progressista com trajetórias particulares e ponto de referência para muitas organizações da sociedade, apresenta-se como espaço criativo (certamente não o único, mas possivelmente o mais abarcador) de invenção e, por isso mesmo, realização, das experiências de esquerda no tempo histórico. Só no tempo histórico gestas singulares podem encadear-se para tomar a forma dum processo emancipatório que, uma vez concebido, torna-se capaz de preservar a coerência dos propósitos de uma força política.

Os Tupamaros, autorizados a reencontrar-se de forma legítima com sua experiência passada e habilitados a disputar os sentidos possíveis da guerra que declararam ao Estado (“o habrá Patria para todos o no habrá Patria para nadie”), têm competência para jogar importante papel num esforço coletivo de “contar e recontar a esquerda”. Exercício este que tende a permitir a concatenação das temporalidades de diversos grupos, garantindo, assim, o encontro de subjetividades necessário ao estabelecimento de um campo semântico estável para o desenvolvimento dos projetos das esquerdas uruguaias.