domingo, 16 de maio de 2010
O mito de Dahrmo Madu
sexta-feira, 7 de maio de 2010
Não era a mesma quando voltou
De volta, viu rostos faceiros, sentiu a língua enrolar - e não só pelo álcool -, as palavras fugirem, constatou cicatrizes perenes no idioma e nos pulmões. Gostou.
Não podia abster-se, contudo, de uma purificação. A ideia de purificação agradava-o. Pudera! Depois de tanta porrificação. Porrificação sem culpa, é certo. Porrificação que, por outro lado, já não cabia no seu admirável mundo velho.
Contou com a complacência dos discursos, viveu o inominável na dor calada que umas ou outras seguraram na garganta. Aceitou, por certo tempo, o sacrifício de não poder re-traduzir-se nos termos dos lugares e pessoas que o tinham esperado. Num ideal de ascetismo, decidiu empunhar a chibata da esperança arruinada e torpe, marcando com ela sorrisos azedos em seu rosto durante meses. Todos deveriam sofrer nessa longa peregrinagem expiatória. Purificar-se não era retornar ao estado anterior, mas sim frustrar-se definitivamente com o que lhe restava depois de tanto tesão, tanto andar e tanta merda disso decorrente.
É verdade que não impôs sofrimento nenhum a ninguém. Pelo menos não deliberadamente. Aceitou a contingência dos sofreres alheios e dela retirou o essencial para a construção de uma nova moralidade, sóbria, amnésica, comprometida em reencontrar os equívocos do passado exatamente na esquina seguinte de futuro. Aceitou definir-se através da dor e da perplexidade dos outros. Aceitou ser o ponto nevrálgico da vida de uma mulher. Sabia que, cedo ou tarde, viriam a ruina e a solidão, varrendo todas as extravagâncias e utopias, deixando de pé apenas o estritamente possível, deixando-o cara a cara com seu novo estado de espírito.
Vendo sofrer, tentou chorar mas não pôde. Seu pranto não teria razão. Compadecer-se de alguém é não olhar para si mesmo.
Ficou em casa e alguém se foi. De regresso ao cômodo, viu roupeiro desfalcado.
Algo estava errado. Seguramente, enquanto ele dormia, ela obrava uma partida triunfal e muda. Esvaziava roupeiros, bancadas; coletava brinquinhos e pulseiras, roupa interior: insignificâncias que, quando ausentes, deixavam crateras na paisagem doméstica. Entre tantos vazios - de fato o quarto era uma paisagem penumbrenta e pontilhada de pequenos vácuos que ainda não significavam nada - , resplandecia uma folha pautada, completamente deslocada, absolutamente autoritária, indisposta ao diálogo. Como podia não ter reparado antes naquele pedaço de papel manchado por letras de menininha? Como podia não ter notado qualquer mudança de expressão no rosto da mulher pequenina que há poucos minutos cruzou o portão do pátio dianteiro.
"Fui embora, não volto mais". Isso realmente impressionou-o. Sentiu-se absolutamente só. Finalmente, o último ser que lhe restava conseguiu frustrá-lo, suicidou-se da sua vida.
Mas um dia ela retornou. Uma ou duas semanas após a despedida crucial habilmente disfarçada de despedida banal. Então ele provou o desespero. A frase do papel pautado cobrava sentido cabal diante da aparente contradição dos fatos. A menininha, a mulherzinha, com efeito, não voltara. Tudo havia mudado: seus olhos, sua expressão, a forma como o lábio superior repousa sobre o inferior durante os intervalos da fala. Definitivamente, estava de regresso e não era a mesma. Jamais seria.