quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Os meios e seus especialistas

Não deixo de surpreender-me com a magnitude do cinismo midiático no que tange a retórica da pluralidade. Qualquer observador atento pôde constatar, durante a cobertura das eleições nacionais, quais são os verdadeiros lobistas da dita opinião pública. Nos diversos canais da TV aberta, vimos se revesarem as cartas marcadas de sempre que, ostentando títulos acadêmicos ou um suposto reconhecimento profissional, deram contudentes aulas de invencionismo caracterizadas, na maioria dos casos, por um tom retórico altamente prescritivo. Nada pode estar mais distante da reflexão científica.

Sujeitos que, em seus respectivos campos de saber, não gozam do mais mínimo reconhecimento se convertem, por mágica, nos respeitáveis arautos do bom senso. Investidos de uma legitimidade precária, os "especialistas" transitam com desenvoltura pelos estúdios da grande mídia esgrimindo constatações que em muito extrapolam as reais aptidões analíticas que seus títulos acadêmicos atestam. Esta é a "pluralidade" que a imprensa brasileira admira? É esta arte de fazer o mesmo discurso ser repetido por meia dúzia de bocas diferentes que eles classificam como "exercício crítico da imprensa livre"?

Preocupa a forma como setores hegemônicos da imprensa brasileira introduzem na esfera pública certas práticas informativas que minam as próprias ambições da democracia. Mais assombroso, contudo, é que não lhes seja feita a adequada oposição. Ecoam, como se fossem unívocas, verdades fabricadas em obscuras redações. Naturalizam-se práticas de debate altamente perniciosas para um sistema político como o brasileiro, cuja carta constitucional pugna pelo aprofundamento e pluralização dos direitos sociais que positivam e dignificam a diversidade. Produz-se uma espécie de esquizofrenia que leva os jornalistas a acreditarem piamente nos dados que, ainda ontem, eram elocubrados por eles mesmos no contexto de articulações eleitoreiras ou mesmo golpistas (lembremos de 2006).

Como é característico do campo jornalístico, o que foi dito num grande jornal se reproduz nos pequenos meios; o especialista mistificado pela cadeia de TV x deve, necessariamente, ser convidado a opinar na emissora y; ninguém pode ficar atrás de ninguém na árdua tarefa de repetir as mesmas coisas em uníssono. Neste circuito, que tem seus acessos e contornos definidos pelo ranço conservador dos ícones do bom jornalismo, flui uma articulação de conjunto que passa a ser anônima (posto que é consensual), mas não perde seu caráter programático, estratégico. E quando falo de estratégia, me refiro a um repertório mais ou menos regular de práticas discursivas que servem para atribuir valores morais diferenciados a sujeitos diversos; que servem para produzir um vocabulário de interpelação que é, acima de tudo, um vocabulário político, ou seja, eficiente para a luta política. Desaba, assim, diante do olhar atento e do ouvido aguçado, todo o suposto ascetismo que nossos "formadores de opinião" ritualizam em seus falsos fóruns de debate plural. Fóruns nos quais a participação de qualquer um está condicionada pelo consenso (ou o termo correto seria adesão?) prévio.

Os meios fazem precipitar sobre a sociedade brasileira certa cultura de debate que valoriza o exercício de manutenção e reprodução do senso comum, este eficaz alimento das consciências que desejam expurgar de si quaisquer ímpetos "ideológicos" ou "autoritários". No fim da história, cá nos encontramos nós, constrangidos a pensar o futuro e a própria ação no presente pelo viés das forças sociais que derrotamos ainda ontem, pelo menos no plano eleitoral.


segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Manifesto dos intelectuais e artistas pró Dilma Rousseff

Dilma em Porto Alegre, primeiro ato da campanha, 2010
Foto: Alex Moraes

N
ós, que no primeiro turno votamos em distintos candidatos e em diferentes
partidos, nos unimos para apoiar Dilma Rousseff.

Fazemos isso por sentir que é nosso dever somar forças para garantir os avanços
alcançados. Para prosseguirmos juntos na construção de um país capaz de um
crescimento econômico que signifique desenvolvimento para todos, que preserve os
bens e serviços da natureza, um país socialmente justo, que continue acelerando
a inclusão social, que consolide, soberano, sua nova posição no cenário
internacional. Um país que priorize a educação, a cultura, a sustentabilidade, a
erradicação da miséria e da desigualdade social. Um país que preserve sua
dignidade reconquistada.

Entendemos que essas são condições essenciais para que seja possível atender às
necessidades básicas do povo, fortalecer a cidadania, assegurar a cada
brasileiro seus direitos fundamentais.
Entendemos que é essencial seguir reconstruindo o Estado, para garantir o
desenvolvimento sustentável, com justiça social e projeção de uma política
externa soberana e solidária.

Entendemos que, muito mais que uma candidatura, o que está em jogo é o que foi
conquistado.

Por tudo isso, declaramos em conjunto o apoio a Dilma Rousseff. É hora de unir
nossas forças no segundo turno para garantir as conquistas e continuarmos na
direção de uma sociedade justa, solidária e soberana. 

Leonardo Boff - Chico Buarque - Fernando Moraes - Emir Sader - Eric Nepomuceno-
Regina Machado - Marcelo Laffitte

Para aderir, escrever a emirsader@uol.com.br e ericnepomuceno@uol.com.br

terça-feira, 3 de agosto de 2010

No fim das viagens



Andei por Colônia do Sacramento na semana passada. Foi a terceira vez em que tive oportunidade de percorrer uma das mais antigas cidades uruguaias. Logicamente dediquei horas da noite e da tarde para passear entre os casarios setecentistas da época portuguesa, dividindo o espaço das estreitas ruas com volumosa quantidade de turistas, a maioria deles procedentes do Brasil e da Argentina.

Câmera em mãos, me vi arrebatado por uma profunda falta de inspiração, não tinha vontade alguma de fazer o registro fotográfico daqueles locais. Nenhuma perspectiva parecia-me adequada, ainda que os golpes de luz crepuscular fossem absolutamente favoráveis. Era uma sensação angustiosa a de não conseguir fotografar. Não acredito nesse papo de "instante decisivo". Em consonância com Sebastião Salgado, creio que todos os instantes são determinantes. O que vale é encadear sua sucessão na esteira de uma narrativa possível. Pois bem, meu dilema era saber por onde começar. Afinal, que 'história' desejava eu relatar com imagens? Não consegui responder a este questionamento. Trouxe na câmera uma miscelânea desconexa carente de sinapses.

Afastei-me do "casco histórico" em direção aos bairros menos turísticos de Colônia. Atravessei multidões alvoroçadas de crianças e adolescentes que concluíam sua jornada de estudos nas escolas e liceus locais. Subi tímidas ladeiras de onde avistei o suave anoitecer da enseada. Caminhei por uma avenida na qual o som dos automóveis se mesclava com gritos de caturritas verdes e azuis, abafando as risadas do menininho de suéter claro que brincava com seu cachorro. Guardei a câmera acreditando ser possível integrar-me aquela paisagem de anônimos.

Quando já o dilúculo era incontestável e seus tons manchavam mornamente a cidade, retornei ao "bairro histórico" (que bairro não é histórico?). Sobre um mirante branco, vi o sol laranja submergir no Rio da Prata. A orla fervia mum burburinho poliglota matizado por ceceos ibéricos, chiada maciez lusófona e acentos italianados do castelhano portenho. Com suas objetivas apontadas para o rio, as câmeras clicavam enlouquecidamente. Apoiado no guardacorpo, fui solicitado por duas espanholas para fotografá-las: queriam um retrato adornado pelo pôr-do-sol. A primeira foto saiu razoável. Céu avermelhado, esfera solar semi-velada pela linha do horizonte escurecida e faces suavemente iluminadas pelo flash de preenchimento. "Sí, está buena", disseram. "Pero mira que hay alguien aquí", acrescentou uma delas sinalizando com o dedo o rosto de alguém desconhecido que, acidentalmente, havia sido captado na imagem. "¿Nos puedes sacar otra que no salga nadie?", perguntou uma das mocinhas. "¿Cómo no?", respondi procedendo aos ajustes necessários para excluir qualquer rebarba humana que fosse inconveniente ao propósito daquela fotografia.

Que propósito era esse? Talvez expressar uma ideia de exclusividade do momento. As duas e o sol, nada mais, ninguém mais. Nenhuma mácula, nenhum borrão humano que delatasse o contexto absolutamente turístico onde se produziu a imagem. Aquela foto, contudo, na sua forma, no seu enquadramento, nas suas margens, era fruto do acomodamento imposto pelo encontro entre um ideal de pureza do momento, disfrute individual do que é belo e as contingências da aglomeração de pessoas. Eu mesmo, ao fim e ao cabo, estava afetado por esse ideal. A angústia inicial de não poder fotografar provinha, justamente, dessa necessidade de encontrar algo autêntico num espaço minado de cartões postais. Encontrava-me incômodo diante de uma situação que me habilitava apenas a narrar percursos turístico. Aquela era, contudo, minha posição, o lugar a partir do qual poderia ousar qualquer intento narrativo, imagético ou não. Esquivar esta realidade das minhas fotos soava a fraude, a inconsistência, a pó.

Quando percorri os bairros mais afastados do circuito turístico, só consegui acumular fragmentos dispersos de algum roteiro que não estava apto a interpretar. Sequer sabia como posicionar-me diante dos elementos que se me apresentavam. Tentava fugir da rota na qual estava compelido a permanecer pelas próprias características de minha presença em Colônia: deveria regressar religiosamente ao hotel, tinha na bagagem as passagens de volta, poucos nomes de rua me soavam conhecidos, pouquíssimas fachadas, varandas ou pátios sugeriam memórias, recordações. Quase nada tinha a dizer ou perguntar (fora do bordão turístico) para aqueles que cruzavam por mim nas esquinas e praças.

Tanto meu inibimento ao produzir imagens quanto a necessidade de exclusividade das meninas espanholas, aparentam ser reflexos de um mesmo temor: retornar para casa trazendo apenas cinzas entre os dedos. Nada de autêntico, nada de concreto, nada espetacular ou inédito. Lévi-Strauss, melancolicamente, fez esta constatação ao abalançar o saldo de suas viagens. Por mais que tenhamos ressalvas consoladoras a fazer diante de conclusões tão pessimistas, é-nos difícil evadir dessa sensação amarga profundamente relacionada com um ideal de viagem que atravessa dezenas de gerações no ocidente.

Relatos de viagem densos e profícuos são possíveis, claro. Contudo, sua produção estará subordinada ao reconhecimento de um lugar específico de inserção que transcende em muito o mero desejo do sujeito. Abdico do desprendimento ostentado pelo peregrino, nego o egocentrismo do explorador e o altruísmo do missionário. O ativismo circunstacial do etnógrafo fica reservado para os momentos em que a disponibilidade de tempo me possibilite cair em redes, acessar e produzir, coletivamente, memórias. Pisarei as ruas do mundo como turista sempre e quando a passagem de volta for imprescindível na bagagem. Turista ousado, é certo. Turista frustrado de antemão, como deve ser. No fim das viagens falarei de mim, de mim entre os outros.

Foto: Alex Moraes - Colonia - jul/10

domingo, 16 de maio de 2010

O mito de Dahrmo Madu

-relato fantástico-


Os iroami, nativos da ilha de Pahdrei Majdou, situada na micronésia, acreditam que um amor apenas é efetivo quando permanece rotundamente não correspondido. Sendo assim, duas pessoas podem chegar a amar-se, mas jamais ao mesmo tempo. Na maioria dos casamentos, os cônjuges ou não se amam (o que é absolutamente aceitável), ou se revezam ao longo dos anos no exercício do amar. O vocábulo "dòrd-cohtveló", que designa o sentimento de amar, também se usa para definir a frustração.

É comum, em Pahdrei Majdou, que os filhos afirmem não amar suas mães. Soaria de péssimo gosto sugerir que se nutre amor pela progenitora. Às mães, se lhes reserva o direito e a obrigação de amar sem que seus rebentos ponham em xeque a pureza do que elas sentem. Só se está autorizado a manifestar amor pela mãe depois da morte desta. Anula-se, assim, a possibilidade de concomitância, ficando preservados, em essência, os afetos que regem a unidade e a solidariedade familiar.

Os nativos evocam um mito - o de Dahrmo Madu - para embasar sua crença na impossibilidade do amor recíproco. Lançando mão de relatos coletados por vários investigadores que aportaram na região, é possível recompor o essencial da história.

O demiurgo Dahrmo Madu sonhou com o homem e com a mulher. No sonho de Dahrmo Madu, o homem e a mulher sonharam que deus os estava sonhando. Foi composta, desta forma, a simbiose cósmica que sustenta o mundo e coloca os seres humanos sintonizados com o divino. Em seu sonho, a divindade profetizou: "juntos, o homem e a mulher se amarão, viverão e procriarão". Cumprindo com o primeiro ditame do criador, o homem e a mulher trataram, assiduamente, de construir o amor. Passaram incontáveis crepúsculos e amanheceres manifestando mutuamente e de todas as formas possíveis, a intensidade do que nutriam um com relação ao outro. Eram tão fortes os quereres de ambos, que lhes foi impossível tomar consciência do próprio amor. Não estavam jamais satisfeitos, sentiam-se em dívida permanente com o criador. Não sabiam até que ponto as ordens divinas estavam sendo cumpridas. Preocupado com esta situação, assombrado com a possibilidade de que jamais a humanidade alcançasse certeza de estar amando, o demiurgo sonhou com outra mulher que, por sua vez, sonhou que deus a estava sonhando. Esta mulher recebeu as seguintes ordens: "não deverás corresponder ao amor de outro homem ainda que vivas e procries com ele". Quando aqueles três seres humanos recém criados se encontraram, o homem, cumprindo com os desígnios da divindade, buscou amar a segunda mulher. Não foi nem mininamente correspondido. Percebeu a dimensão do seu sentimento ao defrontá-lo com a inércia completa da nova companheira: estava enamorado. Quanto à primeira mulher, percebendo que o homem havia conseguido amar - amar a outra -, sentiu uma dor violenta, conscientizou-se, imediatamente, do amor. Era já tarde. O primeiro homem casou-se com a segunda mulher e tiveram um filho. Como a criança recém nascida, sonhada pelos seres humanos, não estava incumbida a priori de exercer qualquer sentimento com relação a ninguém, a segunda mulher achou válido amá-la, mas recomendou-lhe que apenas amasse uma pessoa que não pudesse corresponder aos seus afetos. O menino, quando púbere, apaixonou-se pela primeira mulher - que ainda amava o primeiro homem - e com ela se casou sem nunca ter seus quereres retribuídos. A ingratidão foi o preço a ser pago pela humanidade ao receber o dom de amar conscientemente.

Trabalhos recentes sugerem que alguns aspectos da cosmologia de Pahdrei Majdou podem ser identificados por todo o Pacífico e que, em realidade, nesta pequena ilha da micronésia, se verifica uma exacerbação de noções do amor presentes em diversas regiões da Oceania. Estudos mais arrojados e, por isso mesmo, faltos de qualquer credibilidade acadêmica, chegam a propor que os intensos circuitos de trocas que atravessam o Pacífico há milênios tornam difícil determinar a abrangência desta "filosofia" do amor classificada como 'iroami'. Se aceitássemos a falácia dos trabalhos ditos de "vanguarda", acabaríamos por concluir que o ideal de amor "iroami" está universalizado e sofre pequenas oscilações cujo caráter é meramente situacional. Um absurdo. De ser assim, deveríamos interpretar clássicos do romantismo ocidental como "Romeu e Julieta" enquanto ecos de discursos dissidentes e quase blasfêmicos - ainda que altamente persuasivos. Discursos periféricos à uma suposta arte concreta e generalizada do amor entre os homens.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Não era a mesma quando voltou

Depois de chafurdar em toda a lama porca que se acumula nas duas margens do Rio da Prata, depois de perder os botões da calça, aniquilar o corpo por dentro e por fora a ponto de beirar a decrepitude, achou por bem retornar.

De volta, viu rostos faceiros, sentiu a língua enrolar - e não só pelo álcool -, as palavras fugirem, constatou cicatrizes perenes no idioma e nos pulmões. Gostou.

Não podia abster-se, contudo, de uma purificação. A ideia de purificação agradava-o. Pudera! Depois de tanta porrificação. Porrificação sem culpa, é certo. Porrificação que, por outro lado, já não cabia no seu admirável mundo velho.

Contou com a complacência dos discursos, viveu o inominável na dor calada que umas ou outras seguraram na garganta. Aceitou, por certo tempo, o sacrifício de não poder re-traduzir-se nos termos dos lugares e pessoas que o tinham esperado. Num ideal de ascetismo, decidiu empunhar a chibata da esperança arruinada e torpe, marcando com ela sorrisos azedos em seu rosto durante meses. Todos deveriam sofrer nessa longa peregrinagem expiatória. Purificar-se não era retornar ao estado anterior, mas sim frustrar-se definitivamente com o que lhe restava depois de tanto tesão, tanto andar e tanta merda disso decorrente.

É verdade que não impôs sofrimento nenhum a ninguém. Pelo menos não deliberadamente. Aceitou a contingência dos sofreres alheios e dela retirou o essencial para a construção de uma nova moralidade, sóbria, amnésica, comprometida em reencontrar os equívocos do passado exatamente na esquina seguinte de futuro. Aceitou definir-se através da dor e da perplexidade dos outros. Aceitou ser o ponto nevrálgico da vida de uma mulher. Sabia que, cedo ou tarde, viriam a ruina e a solidão, varrendo todas as extravagâncias e utopias, deixando de pé apenas o estritamente possível, deixando-o cara a cara com seu novo estado de espírito.

Vendo sofrer, tentou chorar mas não pôde. Seu pranto não teria razão. Compadecer-se de alguém é não olhar para si mesmo.

A purificação ainda não havia sido alcançada. Era preciso sofrer as consequencias de algo por hora impreciso. As linhas básicas e gerais do que ele seria daqui para frente eram fugidias. A realidade concreta teimava em manter-se impávida sob um céu tormentoso.

Numa manhã qualquer, acordou acompanhado - como sempre. Empreendeu a banal e quase desnecessária despedida matinal - esta que nos livra de culpa se, eventualmente, ao longo do dia, um sinistro qualquer aniquila nosso concubino/a: "pelo menos eu pude me despedir dele".

Ficou em casa e alguém se foi. De regresso ao cômodo, viu roupeiro desfalcado.

Algo estava errado. Seguramente, enquanto ele dormia, ela obrava uma partida triunfal e muda. Esvaziava roupeiros, bancadas; coletava brinquinhos e pulseiras, roupa interior: insignificâncias que, quando ausentes, deixavam crateras na paisagem doméstica. Entre tantos vazios - de fato o quarto era uma paisagem penumbrenta e pontilhada de pequenos vácuos que ainda não significavam nada - , resplandecia uma folha pautada, completamente deslocada, absolutamente autoritária, indisposta ao diálogo. Como podia não ter reparado antes naquele pedaço de papel manchado por letras de menininha? Como podia não ter notado qualquer mudança de expressão no rosto da mulher pequenina que há poucos minutos cruzou o portão do pátio dianteiro.

"Fui embora, não volto mais". Isso realmente impressionou-o. Sentiu-se absolutamente só. Finalmente, o último ser que lhe restava conseguiu frustrá-lo, suicidou-se da sua vida.

Mas um dia ela retornou. Uma ou duas semanas após a despedida crucial habilmente disfarçada de despedida banal. Então ele provou o desespero. A frase do papel pautado cobrava sentido cabal diante da aparente contradição dos fatos. A menininha, a mulherzinha, com efeito, não voltara. Tudo havia mudado: seus olhos, sua expressão, a forma como o lábio superior repousa sobre o inferior durante os intervalos da fala. Definitivamente, estava de regresso e não era a mesma. Jamais seria.

Puro e despojado, punido com a desaparição repentina do amor de outrem, saqueado de todo substrato humano que pudesse respaldar ódio, ternura ou sadismo, sentia-se pronto, novamente, para devotar-se a outras mulheres erradas.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

sans me rendre compte

Une nuit
sans me rendre compte
J'ai vu le diable.
Je l'ai vu
en los ojos de una mujer.
No titubeé.
Hoje, só, choro.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Os Homens Puros da Azenha

- relato fantástico -

A temática dos Homens Puros da Azenha vem instigando toda sorte de jornalistas e outros especialistas-do-que-é-genérico. Confesso que o assunto me atrai, até porque vivo próximo do suposto berço da famigerada confraria. Como contributo ao trabalho de desvendar os meandros da racionalidade dos Homens Puros, divulgo este pequeno artigo que seria, sem dúvida, publicado na revista O Cruzeiro não fosse a pesada censura imposta sobre referido semanário na década de 1970. Penso se tratar da última (e mais recente) [tentativa de] alusão pública aos Homens Puros.

“A confraria dos homens puros resistiu bravamente ao avanço do comércio e da indústria na Azenha. Relatos policiais do século XVIII informam que, desde o aparecimento dos primeiros moinhos na região, houve cidadãos reácios a nova matriz produtiva. Estes realizavam módicos protestos diante das hélices alvoroçadas. Tais manifestações consistiam em rituais baseados no consumo ostensivo do tabaco negro e do vinho tinto durante todo o período abarcado pela jornada de trabalho dos operários (então de 60 horas semanais). Dizem os amarelados papeis do Arquivo Público, que os homens puros, rejeitando a laboriosa rotina das moendas, acampavam às suas portas para estremecer a disciplina fabril. Os documentos históricos, contudo, pecam em não fornecer descrições precisas a respeito da procedência desses sujeitos. Não sabemos, portanto, quem eram e nem mesmo a qual setor social pertenciam.

Era prática, nos famosos acampamentos, que alguém se encarregasse de ofertar – a preços simbólicos – bebida e cigarros para os participantes. Na medida em que os moinhos se avolumaram e, por conseguinte, os acampamentos também, o comércio de víveres (permitam-me a ironia no uso da palavra) ganhou força. Em meados do século XIX, as primitivas fábricas de farinha já tinham perdido sua pujança, contudo os comerciantes de bebida e tabaco viviam seu apogeu. Estes homens gozavam de farta clientela, sem dúvida arrebanhada à época dos combativos acampamentos. Hoje em dia, são eles (ou, melhor dizendo, seus descendentes) que controlam a venda ostensiva de pequenezes da Azenha.

A Confraria dos Homens Puros segue rejeitando aqueles filhos pródigos que, com deslavado utilitarismo, se aproveitaram dos históricos protestos anti-moinho para converter a Azenha naquilo que certos arquitetos oitocentistas haviam chamado de “bairro com vocação comercial”. Entretanto, sem abandonar um profundo espírito auto-crítico, estes mesmos homens puros reconhecem, em seus rituais de intoxicação coletiva, que tiveram certa parcela de culpa no que consideram a “degradação final” do bairro. Ao lutar contra a indústria, fomentadora do progresso comercial, os confrades alentaram as formas mais mesquinhas do varejo.

Dagoberto de Souza, folclorista de inícios do século XX, chegou a acompanhar, durante cerca de oito anos, as atividades da Confraria dos Homens Puros da Azenha. Encontrava-se com eles nos bares da região ambicionando remontar o repertório de clichês e chavões utilizados por aqueles idôneos cavalheiros no momento de combater o que julgavam “afrontas ao bem viver e ao bem querer”. Os escritos de Souza apresentam as mais sólidas descrições disponíveis acerca dos Homens Puros e, por isso mesmo, servem como substrato à presente explanação. No terceiro tomo de “Breves apontamentos sobre as confrarias masculinas do Brasil meridional”, Dagoberto elenca alguns bordões correntes entre os Homens Puros:

- “De que outra cousa posso viver senão viver do que sei fazer?”
- “A fumar m'ensinam os confrades, a beber m'ensinou a avó. De amar me dão lição as moçoilas; para cantar m'oferecem razão. A mal-falar m'obrigo, portanto, de quem m'ensina a ensacar feijão”.
- “Dizem que bom partido há n'independencia, mulher de corpinho e milhão, mas não hei de negar, confrade, que mais barato me sai o cantão*”

Nota de Dagoberto:

* Depois de muito revirar a Biblioteca Pública com auxílio do Doutor Romero Figueiredo, vim a inteirar-me que o “cantão” evocado pelos bordões dos Homens Puros alude, em verdade, aqueles prostíbulos que se amontoam na Rua da Praia desde o crepúsculo da última centúria.

Após Dagoberto de Souza, poucos estudiosos se aventuraram a rastrear os expedientes da Confraria dos Homens Puros da Azenha. João Ângelo da Cunha Neto foi um deles. Engenheiro de profissão, João soube, com maestria, deslindar os princípios morais que serviam de base àquela obscura agremiação masculina da zona Centro-Sul. Em 1958, Cunha Neto publicou sucinto mas elucidativo artigo na revista de bairro “O Coqueiro”, onde manifestava sua admiração pelo que considerava “a mais original das idiossincrasias do Sul da metrópole”:

Mesmo há pouco tendo estabelecido residência nestas bandas, já tenho resposta para quando me inquerem sobre o que de bom brinda o bairro. Os Homens Puros, pois! Estes distintos cavalheiros, se bem não são o bastião moral da vizinhança, infundem em nossas noites os últimos ecos duma boemia nostálgica e romântica que bem poderia, não fosse o avanço das boîtes, seguir representando o restolho de originalidade desta urbe. Devemos vangloriar-nos destes cidadãos que muitos tildam “ébrios nostálgicos”, pois graças a sua aversão às contingências do progresso, instilam, entre mourões de concreto, algum reduto humanizado cujos serviços nos serão caros em hora de desesperação. As grandes alamedas estão impávidas - não se esqueçam - frente às angústias do homem quebrantado.

Desafortunadamente, o relato de João Ângelo é o último registro documental dos Homens Puros. Toda a informação atual que deles dispomos provem de relatos fragmentados. Trata-se de anedotas vulgares, fartamente disponíveis em qualquer moquifo capitalino. Elas afirmam que os homens puros se diasporizaram na década de sessenta e hoje pregam em todas as zonas da metrópole. De Buenos Aires chegam duvidosos informes falando da aproximação entre os Hombres Sensibles del Barrio de Flores e os Homens Puros da Azenha. Estes últimos teriam, sob pretexto do exílio político, fixado domicílio nos arrabaldes da capital argentina para, ao lado dos seus congêneres portenhos, fundar uma seita milenarista.

É quase impossível não manter cautelosa incredulidade diante de semelhantes elocubrações, certamente forjadas pelos históricos inimigos dos Homens Puros da Azenha. Particularmente, acredito ser inviável a teoria da dispersão, pois os homens puros, desde seus primórdios, estiveram espalhados por aí, alojados em lugar nenhum. Juntaram-se episodicamente no intento de demonstrar rechaço perante uma prática que os perturbava – a saber, a construção dos moinhos. Depois, organizaram fortuitas reuniões de bar, absolutamente informais. Sequer eram, portanto, os Homens Puros da Azenha. Arriscaria dizer que passaram a ser assim chamados por seus detratores. Na sua ingenuidade de folclorista, Dagoberto de Souza reproduziu uma categoria absolutamente artificial. Esta explicação, por si só, é suficiente para desbancar a suposição de que os Homens Puros – enquanto unidade – se exilaram em Buenos Aires.

Admito, entretanto, não ser eu o mais apto para responder qual destino tiveram aqueles que reivindicam a herança moral dos quixotes do século XVIII. Contento-me com evocá-los, torná-los plausíveis em minhas crônicas, sem perder a esperança de que seus ecos e gestos subsistam para além das letras".

segunda-feira, 1 de março de 2010

A ETERNIDADE

A força invencível que impulsiona o mundo não são os amores felizes, mas sim os contrariados – bem disse Garcia Márquez em outras palavras do seu “Memórias de Minhas Putas Tristes”.

Eu, que sei pouco e que pari este filme duma observância ligeira, descobri que o tempo é o que poderia me ditar a história. Mas não o tempo do senso-comum, o tempo fortuito e do acaso, e sim o tempo-imagem, o tempo que se pode esculpir. Dos amores contrariados, dissolvidos, visualizei a fábula. Nasceu junto com a imagem de São-Felix-Cachoeira, a ponte e seus lampejos noturnos, o silêncio da madrugada, o apito do trem, a música, a eterna música fabricada no sonho, no inconsciente do Recôncavo Negro e Tropical.

A memória, objeto do meu estudo fílmico, aflora também neste filme. Os fluxos, as elipses, o ritmo pausado, as sobreposições, as imagens-poemas, tudo é janela para livre interpretação. Em A Eternidade os signos estão impressos, expostos, vivos. Matéria pra pensar, pra sentir. Ecos de reverberação da angústia, candeias da melancolia, tons da fome e do desespero, luz, luz do amor e da sorte.

Chora o clarinete, devaneia o coração. É ela, acesa na noite, ligeira na água, companheira no vício, generosa na falta, é ela, encontrada em Rimbaud, emancipada em Eliot, reiventada por nós, é ela. O instante, o longo, o vivo, o morto, o terreno, o espírito, tudo cabe nela. O preto, o branco, o amarelo, o colorido. A eternidade é colorida, e a razão para ser se nutre do branco, que representa a unidade do tempo, e que dissolvido tem em seu espectro a palheta do mundo, de cores e de sensações. É a partir desta breve reflexão que convido-os para ver e ouvir, fruir ao encontro de A Eternidade.

Confiram o trailer:


sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Poema do futuro

Não é porque o
café se dissolve em marasmo
que deixo de contemplar,
gozar o dom da espera alucinada.

Espera alucinada de futuros
que nunca, nunca se desdobram,
pois futuros não estão
na paisagem, "são nada
à vida" - ousaria dizer,
outrora, ao lado do poeta baiano.

Meu poeta baiano das noites
de confraria, que, a propósito,
eram o sonho e, por isso mesmo,
a vida.

O futuro sequer é sonho.
Trata-se de delírio da razão,
xadrez do consciente, berço
do egoísmo, este adubo do indivíduo.

Adubo do indivíduo dúbio,
enclausurado no âmago do
minuto, debatendo-se entre
o tempo do mito e o porvir.

O porvir desejado, ambicionado,
é frustração, é negação
de qualquer corrente serena
que constrói derredores
desenvoltos e obscenos.

Quero o obsceno! Essa coisa
de desvendar ombros ao
rítimo oco da vida que late
sem saber-se vida; secar suor
n'aragem, escutar rumor de folharadas,
incorporar a viração que tudo
desnuda e conduz.

E porque quero, me frustro:
novamente o que virá é
o velho futuro, essa cadeia
que desencadeamos na arte
consciente do banal.

Resta-me o café cortado
e seu matizes lácteos,
resta-me definhar no seio
do instante. Saber-me triste.
Porque se há vida que pulsa
fora de mim,
é contingência.
O contingente é ficção.

Ficção que se burla do vivido,
do vívido; caçoa do artesão
que se faz duramente a cada momento;
nega o cerne da escolha,
a opulência vital de cada punheta,
de cada segundo amargo na espera,
de cada passo rumo ao que jamais foi,
de cada manifestação da náusea cafeinada.

Essa ficção é claustrofóbica,
pois da tristeza radicalmente
cosciente que gera,
não me permite destilar a
mais cabal das alegrias. Nega-me a vida.
Lança-me à sua periferia, chama-me de
espectro do porvir.
Esquece-se de que sequer há vida!
Existem apenas moribundos.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

A médica do trabalho que iria atender minha mãe hoje estava de licença por conta de uma doença muito grave, voltaria ao consultório daqui quinze dias. Não sabemos mais o que fazer.

Amanhã minha mãe vai visitar líderes religiosos para procurar uma poção que tire o mal olhado dela...

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Milena

As prosas fantásticas se insinuam, quase todas, de maneira semelhante. O autor dá início ao texto relatando que determinada história de aparência verossímil lhe foi contada por alguém, num momento ao mesmo tempo específico e difuso. Este breve relato começa exatamente assim, mas asseguro que em muito seu conteúdo dista da ficção.

O fato é que numa noite de profundo azul e distante firmamento das que caracterizam o mês de agosto no Atlântico Sul, tive a oportunidade de conhecer e escutar dona Isabel. Esta mulher habitava, desde os funerais do seu marido, um quartinho mofado localizado aos fundos do edifício que me serve como retiro invernal na costa riograndense. Encarregada de tomar conta do prédio em baixa temporada, transpunha raramente o perímetro do imóvel. Em muitas ocasiões, acometido pela sensação por vezes incômoda de estar absolutamente só no apartamento vazio, reconfortei-me lembrando que, lá embaixo, encontrava-se Dona Isabel, sua revistinha de palavras cruzadas, sua televisão mal sintonizada, sua caturrita engaiolada. Era como ter uma espécie de companhia ausente. Contudo, naquela derradeira noite de inverno, quando sequer me sentia sozinho, a franzina Isabel abandonou seu habitual ostracismo para bater em minha porta.

Atendi perplexo a inusitada visitante. Ela pediu desculpas primeiro pelo avançado da hora e segundo, por não recordar meu nome. Me chamo Henrique - disse - e quanto à hora, não há problema, durmo tarde. Isabel silenciou, olhou artificialmente para o chão. Não tive outra opção que perguntar se desejava entrar. Acomodei-a na sala e, enquanto preparava o café, inqueri se algo havia acontecido. Quando Milena me visita, não consigo pregar os olhos - respondeu. Ainda perplexo, com duas xícaras na mão, sentei-me em uma cadeira diante de Isabel e, franzindo a sobrancelha, disse: Milena? Compartilho com o leitor a longa e desconcertante resposta oferecida pela obscura senhora:

"o moço não parece ser daqueles que muito se prende ao que passa mais além da janela do apartamento. Desculpe a petulância, mas é o que me parece e, particularmente, não vejo mal nenhum nisso. Olhando as prateleiras da sua sala, todos os livros que mantem aqui, penso que se diverte entre as letras, como me divirto eu com as revistinhas de palavras cruzadas. Claro, tampouco saio muito do prédio, estou envelhecida, mas nunca me senti enclausurda. Ainda que este corpo não me permita qualquer incursão mais demorada pelo povoado, fico atenta ao céu, à natureza, ao vento que sopra e me traz ares sempre renovados, talvez provindos de outros vilarejos e cidades. Traz, também, o nevoeiro e Milena. Certamente o moço não reparou que quando a noite caiu completamente, trouxe consigo uma aragenzinha gélida e aquele nevoeiro de agosto. Maldito e previsível nevoeiro. Digo que não reparou porque a janela deste apartamento esteve fechada durante toda a tarde. Para responder sua pergunta, para deixar claro quem é Milena, preciso comentar um pouco sobre essa neblina pesada e escura que hoje cobriu a praia. Trata-se de um fenômeno raro no inverno. Costuma ocorrer com mais intensidade em pleno verão, mas não é a mesma coisa. O nevoeiro do inverno chega cedo e se dissipa rápido. O do verão vai se espraiando madrugada adentro e some aos poucos, suavemente, arrefecendo por completo sob a primeira luz da manhã. Conheço bem o clima do litoral porque, quando faleceu meu marido, preenchi os dias de luto com a exaustiva observação do tempo. Sentada num pátio qualquer, descobri cada uma das sutis mudanças atmosféricas que transformam dia em noite e ativam o gradiente das estações. Sei exatamente quando a brisa de inverno começa, ardilosamente, a flertar com a primavera num idílio inexorável que as últimas geadas não chegam a acobertar. Sou capaz que prever, inclusive, o último gelo matutino antes que este se acumule sobre o pasto. O mesmo ocorre com o nevoeiro que hoje apagou a orla, os postes, a estrada. Três ou quadro dias antes da sua vinda, posso percebê-lo pelas sutis reverberações que provoca no vento indiscreto. Fico sobressaltada porque sempre, junto com o nevoeiro, vem Milena. Antes eu não sabia escutá-la. Agora que suas palavras soam claras nos meus ouvidos e me restam parcos meses de vida, preciso compartilhar minha sórdida verdade. O faço por mim e o faço por Milena. Desculpe o egoísmo, mas não tenho outra opção, o ímpeto que me levou a procurá-lo nesta madrugada, dificilmente irrompa em outra oportunidade. Sou extremamente reservada, tenho plena consciência do quão raros são os momentos de abertura e franqueza que me permito. Ademais, Milena exige tudo isto. Vou direto ao ponto, vejo enfado no seu olhar. O nevoeiro se ergue a duas milhas da costa, traz consigo mormaço sulfuroso do oceano matizado pelo cheiro das algas. Mas este nevoeiro é também, acima de tudo, um sentimento, porque conduz incrustado em seu âmago toda a resignação e espanto das almas dos afogados. Quando percebi o real caráter da intempérie, compreendi por que ela é capaz de aninhar no mais profundo de nosso ser, de nosso íntimo. Desde então comecei a dar ouvidos aos pregões de Milena, que antes pairavam desapercebidos. Não se sinta lisonjado por ser caudatário da minha história. Outros já tiveram a oportunidade de conhecê-la, mas me rotularam como louca. O que o torna diferente dos demais é não pensar que me falta lucidez. Por saber o quanto me levaria a sério, hesitei bastante em procurá-lo. Agora, entretanto, dividimos um dom ou, talvez, uma condenação. Estou certa de que atentará para a próxima neblina e algo lhe fará lembrar este nosso encontro. Será no ano que vem, não mais habitarei a soturna peça do andar térreo. Não mais serei a invisível companhia calada cuja presença acalma, vez que outra, suas solidões noturnas. Entretanto, o moço terá, caso queira, os pregões de Milena, seu denso e sufocante alento no cerne daqueles instantes que, por serem sombrios, parecem os mais desoladores. Quiçá aprenda, então, a apreciar o valor de fazer-se presente para outrem, rompendo, assim, a falsa aura de impenetrabilidade que nossa própria solidão aparentemente ostenta. Por estarmos sós, não precisamos impor solidão aos demais. Isso ensinou Milena, com sua voz de morte que a cada ano deixou-me mais absorta. Atualmente, quando falo com outras pessoas, só consigo pensar nela, arremessando sobre os poucos que me rodeiam o fel das elocubrações alentadas pelo tenebroso nevoeiro.".

Depois de terminar seu monólogo, que repercutiu como litania triste e monocorde nas paredes da sala, dona Isabel levantou-se com ares de esgotamento. Supus que ela desejava ir embora. Abri a porta e dei boa noite. A senhora foi caminhando pelo corredor escuro e desceu, lentamente, as escadarias. Tive um súbito arrepio que enrijeceu minhas costas e se espalhou ao longo dos meus braços. Preparei mais café, liguei o som, fechei as persianas e tive a certeza de que minha tranqüila solidão havia sido usurpada vilmente. Nunca mais regressei ao apartamento no inverno, pois temia que alguém pudesse ameaçar minha auto-imposta desolação, convertendo-a em monstruosidade intransponível, indomável. Certamente esse alguém não seria dona Isabel, que veio a falecer de agudo câncer abdominal meses depois da inesperada visita noturna que me fez. Temo a companhia de Milena, temo a mais claustrofóbica das solidões.
Alex - Janeiro/10
Terça-feira, 12 de janeiro de 2010
Eu poderia estar na Espanha, em Barcelona, mas um imprevisto mudou algumas coisas. Um desencontro desses que acontece aos milhões na nossa vida. "Um desencontro" é modéstia minha, que além dos desencontros muitos encontros aconteceram concomitantemente. Como a mulher que trabalha com minha mãe que encontrou o telefone da minha avó de piracicaba para dizer que minha mãe havia passado em um concurso interno da ceagesp, mas precisaria entregar um exame médico admissional até o dia 15 de janeiro (daqui a três dias) no departamento pessoal. Minha vó encontrou o telefone do irmão do meu pai e ligou para ele tentando encontrar a gente, mas quem nos encontrou foi uma tia do meu pai que mora no Vilar de Cunhas que recebeu uma ligação do tio Carlos que mora no Benfica dizendo que recebeu a visita da minha prima Jéssica que havia recebido uma ligação do Brasil do meu tio Miguel com a notícia. Comemoração! (depois de dez minutos) Silêncio... Como chegar a Vila Leopoldina em São Paulo até o dia 15 com um exame médico admissional? Pois é, hoje termina o segundo dia extra em Lisboa sem encontrar solução nenhuma, mas com alguns desencontros que merecem o registro.
Desencontros, eu digo, porque após alguns telefonemas minha mãe descobriu que poderia fazer o exame por aqui mesmo numa clínica que chama "unimed" (mas não é a mesma do Brasil) e enviá-lo através do fax até a departamento pessoal da ceagesp. Chegamos em Lisboa ontem de manhã e fomos até a tal clínica. Nós iríamos conhecer os arredores enquanto minha mãe iria conversar com o médico. Depois de uma hora fomos ao ponto de encontro e como minha mãe não estava lá resolvemos ir ao encontro dela na clínica, que ficava em um prédio de negócios, no quinto andar. Quando dissemos que queríamos ir na unimed o gentil homem da recepção nos respondeu: "Esse aí não existe mais. Pediram falência no começo de dezembro e têm até o final de janeiro para tirarem as coisas daqui." E fomos atrás de minha mãe que já nos procurava a um bom tempo pelos arredores da, agora antiga, clínica.
Mas não havia com o que temer, hoje meu tio Carlos disse que conhece um médico do trabalho aqui em Lisboa que poderia nos ajudar. Quando o tio Carlos ligou para ele descobriu que seu amigo e médico que nos daria a liberdade havia morrido semana passada. Não sei mais detalhes.
Os desencontros de hoje acabaram com um breve passeio pelo castelo de São Jorge com a esperança de que a consulta marcada para amanhã às seis com um outro médico aconteça e que até o dia 15 o exame médico admissional esteja na Vila Leopoldina em São Paulo e nós em algum lugar de Barcelona...