terça-feira, 3 de agosto de 2010

No fim das viagens



Andei por Colônia do Sacramento na semana passada. Foi a terceira vez em que tive oportunidade de percorrer uma das mais antigas cidades uruguaias. Logicamente dediquei horas da noite e da tarde para passear entre os casarios setecentistas da época portuguesa, dividindo o espaço das estreitas ruas com volumosa quantidade de turistas, a maioria deles procedentes do Brasil e da Argentina.

Câmera em mãos, me vi arrebatado por uma profunda falta de inspiração, não tinha vontade alguma de fazer o registro fotográfico daqueles locais. Nenhuma perspectiva parecia-me adequada, ainda que os golpes de luz crepuscular fossem absolutamente favoráveis. Era uma sensação angustiosa a de não conseguir fotografar. Não acredito nesse papo de "instante decisivo". Em consonância com Sebastião Salgado, creio que todos os instantes são determinantes. O que vale é encadear sua sucessão na esteira de uma narrativa possível. Pois bem, meu dilema era saber por onde começar. Afinal, que 'história' desejava eu relatar com imagens? Não consegui responder a este questionamento. Trouxe na câmera uma miscelânea desconexa carente de sinapses.

Afastei-me do "casco histórico" em direção aos bairros menos turísticos de Colônia. Atravessei multidões alvoroçadas de crianças e adolescentes que concluíam sua jornada de estudos nas escolas e liceus locais. Subi tímidas ladeiras de onde avistei o suave anoitecer da enseada. Caminhei por uma avenida na qual o som dos automóveis se mesclava com gritos de caturritas verdes e azuis, abafando as risadas do menininho de suéter claro que brincava com seu cachorro. Guardei a câmera acreditando ser possível integrar-me aquela paisagem de anônimos.

Quando já o dilúculo era incontestável e seus tons manchavam mornamente a cidade, retornei ao "bairro histórico" (que bairro não é histórico?). Sobre um mirante branco, vi o sol laranja submergir no Rio da Prata. A orla fervia mum burburinho poliglota matizado por ceceos ibéricos, chiada maciez lusófona e acentos italianados do castelhano portenho. Com suas objetivas apontadas para o rio, as câmeras clicavam enlouquecidamente. Apoiado no guardacorpo, fui solicitado por duas espanholas para fotografá-las: queriam um retrato adornado pelo pôr-do-sol. A primeira foto saiu razoável. Céu avermelhado, esfera solar semi-velada pela linha do horizonte escurecida e faces suavemente iluminadas pelo flash de preenchimento. "Sí, está buena", disseram. "Pero mira que hay alguien aquí", acrescentou uma delas sinalizando com o dedo o rosto de alguém desconhecido que, acidentalmente, havia sido captado na imagem. "¿Nos puedes sacar otra que no salga nadie?", perguntou uma das mocinhas. "¿Cómo no?", respondi procedendo aos ajustes necessários para excluir qualquer rebarba humana que fosse inconveniente ao propósito daquela fotografia.

Que propósito era esse? Talvez expressar uma ideia de exclusividade do momento. As duas e o sol, nada mais, ninguém mais. Nenhuma mácula, nenhum borrão humano que delatasse o contexto absolutamente turístico onde se produziu a imagem. Aquela foto, contudo, na sua forma, no seu enquadramento, nas suas margens, era fruto do acomodamento imposto pelo encontro entre um ideal de pureza do momento, disfrute individual do que é belo e as contingências da aglomeração de pessoas. Eu mesmo, ao fim e ao cabo, estava afetado por esse ideal. A angústia inicial de não poder fotografar provinha, justamente, dessa necessidade de encontrar algo autêntico num espaço minado de cartões postais. Encontrava-me incômodo diante de uma situação que me habilitava apenas a narrar percursos turístico. Aquela era, contudo, minha posição, o lugar a partir do qual poderia ousar qualquer intento narrativo, imagético ou não. Esquivar esta realidade das minhas fotos soava a fraude, a inconsistência, a pó.

Quando percorri os bairros mais afastados do circuito turístico, só consegui acumular fragmentos dispersos de algum roteiro que não estava apto a interpretar. Sequer sabia como posicionar-me diante dos elementos que se me apresentavam. Tentava fugir da rota na qual estava compelido a permanecer pelas próprias características de minha presença em Colônia: deveria regressar religiosamente ao hotel, tinha na bagagem as passagens de volta, poucos nomes de rua me soavam conhecidos, pouquíssimas fachadas, varandas ou pátios sugeriam memórias, recordações. Quase nada tinha a dizer ou perguntar (fora do bordão turístico) para aqueles que cruzavam por mim nas esquinas e praças.

Tanto meu inibimento ao produzir imagens quanto a necessidade de exclusividade das meninas espanholas, aparentam ser reflexos de um mesmo temor: retornar para casa trazendo apenas cinzas entre os dedos. Nada de autêntico, nada de concreto, nada espetacular ou inédito. Lévi-Strauss, melancolicamente, fez esta constatação ao abalançar o saldo de suas viagens. Por mais que tenhamos ressalvas consoladoras a fazer diante de conclusões tão pessimistas, é-nos difícil evadir dessa sensação amarga profundamente relacionada com um ideal de viagem que atravessa dezenas de gerações no ocidente.

Relatos de viagem densos e profícuos são possíveis, claro. Contudo, sua produção estará subordinada ao reconhecimento de um lugar específico de inserção que transcende em muito o mero desejo do sujeito. Abdico do desprendimento ostentado pelo peregrino, nego o egocentrismo do explorador e o altruísmo do missionário. O ativismo circunstacial do etnógrafo fica reservado para os momentos em que a disponibilidade de tempo me possibilite cair em redes, acessar e produzir, coletivamente, memórias. Pisarei as ruas do mundo como turista sempre e quando a passagem de volta for imprescindível na bagagem. Turista ousado, é certo. Turista frustrado de antemão, como deve ser. No fim das viagens falarei de mim, de mim entre os outros.

Foto: Alex Moraes - Colonia - jul/10