sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Desastre Socioambiental

"A explosão de uma loja que vendia fogos de artifício e brinquedos, localizada em uma rua repleta de casas e pequenos comércios em Santo André (Grande SP), matou duas pessoas, feriu outras 15 e destruiu quatro casas. O local ficou devastado -outras 30 casas foram evacuadas e a rua ficou encoberta por destroços, sujeira e uma fumaça espessa" (Folha de São Paulo. Ano 89, Nº 29.395, 25/09/2009).

O jornalismo registra os fatos. Árdua tarefa para o Sociólogo acompanhar e, mais ainda, desvendar o significado oculto dos fatos cotidianos. Por isso teorizamos: para ressignificar o que, pela repetição, se torna banal, corriqueiro, destituído de importância.
As explosões em Santo André não podem ser tratadas como simples "acidente". É o diagnóstico das atividades humanas quando, essas, geram consequências imprevistas pela simples racionalidade econômica.
Dito de outra forma: a complexidade do meio ambiente é reduzida apenas no seu valor econômico em detrimento dos demais valores (social, cultural, político e ambiental). O problema é que os prejuízos cobrem todas essas esferas (ou campos) incluindo o econômico.
O pior é que tal perversidade não contribui para o amadurecimento da sociedade se ficar preso a descrição dos fatos. Essas pessoas não podem contestar algo que não seja o dono do estabelecimento, já que o pensamento responsável pelo desastre é algo internalizado na cultura e nos hábitos individuais e coletivos, por isso se repetem, mesmo que de outra formas.
Outros dois fatores se relacionam com os já mencionados (que por motivo de tempo serão apenas citados): a necessidade de descentralização como medida para conter o "inchaço urbano", apontado por Ignacy Sachs no seu livro "Rumo à Ecossocioeconomia", e a pobreza que leva, necessariamente, a um grande contingente de pessoas conviverem com riscos industriais ou estruturais.
Acredito que ao invés de "acidente" devemos rotular o acontecimento de "desastre socioambiental". Levamos em conta, com base nos grandes pensadores do nosso tempo, a complexidade dos saberes que se preocupam com a vida e com a justiça social.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Come quieto

Há cerca de dois meses, em Montevidéu, assisti um ato público seguido de conferências para discutir o golpe de Estado em Honduras. Naquela ocasião, falou-se bastante sobre qual o papel da comunidade internacional latinoamericana na questão. Houve consenso em torno da idéia de que o atual momento da política externa no continente exigia interferência das nações Sul Americanas no caso, reduzindo a participação dos Estados Unidos. Esta seria uma forma de enfatizar que os projetos progressistas em marcha na região podem ser sustentados pela solidariedade entre os governos do Sul, sem tutela ianque. Favoreceria-se, desta maneira, a gradual consolidação dum espaço de influência e circulação para novas modalidades de gestão, distanciadas dos velhos e nefastos ditames nortistas (cuja presença se fez notar, inevitavelmente, nos pacotões de medidas econômicas “sanitárias” que chegaram embutidos em empréstimos milionários esparramados pela América Latina). Se na economia demoraremos um pouco mais em romper a hegemonia, podemos, contudo, aproveitar-nos das margens de manobra que a política oferece neste momento – tal foi a lógica das discussões em Montevidéu. Mas quais países estariam habilitados a representar o bloco do Sul na pressão pela restituição do presidente hondurenho? Venezuela? Argentina? Bolívia? Paraguai? Os quatro juntos? E o Brasil? - Perguntei. Um jornalista presente na mesa de debatedores ofereceu vaga resposta, não sabia muito bem qual tinha sido o histórico dos posicionamentos do Itamarati frente ao impasse. Quando abri o jornal, hoje pela manhã, soltei um “ufa!” de tranqüilidade e satisfação. A manchete principal dizia: “Agora, é restituição ou morte – Presidente deposto de Honduras volta e se refugia na embaixada brasileira”. Parece que o Zelaya (foto - já na embaixada do Brasil) esteve viajando umas 15h por picadas escuras, trocando de veículo constantemente para evitar barreiras do exército, até ser recebido, de braços abertos, na representação diplomática brasileira em Tegucigalpa. Alegra-me saber que longe do ausentismo alardeado por alguns, o governo brasileiro optou por manter posição ativa e decisiva frente à tragédia de Honduras. Espero da política externa brasileira que, cada vez mais, seja generosa e sensível no desempenho das suas funções de mediadora desses novos tempos latinoamericanos. Aos analistas internacionais, sugiro que atentem para o Brasil se quiserem efetuar avaliações mais completadas dos atuais processos políticos no continente, afinal, a palavra hispânica “cambio” tem tradução direta para o português (“mudança”) e o país de Lula protagoniza, ao lado de outras nações, um ousado projeto de invenção da soberania no Sul do mundo.

domingo, 13 de setembro de 2009

Mi Patria está en la Frontera

He dicho Escuela del Sur; porque en realidad, nuestro norte es el Sur. No debe haber norte, para nosotros, sino por oposición a nuestro Sur. Por eso ahora ponemos el mapa al revés, y entonces ya tenemos justa idea de nuestra posición, y no como quieren en el resto del mundo. La punta de América, desde ahora, prolongándose, señala insistentemente el Sur, nuestro norte (Joaquín Torres García)

Ontem à noite, no Teatro do Bourbon Country, Ana Prada lançou ao ar, com forte acento castelhano, palavras mais ou menos assim: “vir a Porto Alegre tem um pouco a ver com a canção Tierra Adentro. Afastar-se do mar, ir entrando. Somos muito parecidos [gaúchos e uruguaios]”. Os rostos, na platéia, se encheram de satisfação. A tônica do espetáculo PoA-Montevideo – Sin Fronteras foi essa: uma intensa tentativa de buscar semelhanças, identidades, transitar entre dois idiomas, conformar novos e fecundos espaços culturais pautados pelo intercâmbio e a generosidade.

Vitor Ramil (BR), Marcelo Delacroix(BR), Daniel Drexler(UY) e Ana Prada(UY), acompanhados por músicos gaúchos e uruguaios qualificadíssimos, desenvolveram maravilhosa performance, com arranjos muito bem resolvidos e um interessante revezamento dos cantores em trios e duetos. Para compor o espetáculo, cada artista escolheu duas ou três músicas do seu repertório que foram re-arranjadas para compor uma “sinfonia” comum, matizada por envolvente mescla de sotaques. Este show que ficará para a história, marca um momento diferenciado da produção cultural independente no Rio Grande do Sul.

Há anos, Vitor Ramil tem desenvolvido, junto com outros músicos, no Rio da Prata, projetos que cada vez mais abarcam novas propostas estetéticas e constituem-se numa perspectiva original para quem faz música no Estado. A tradicional barreira que as composições gaúchas encontram nos centros nacionais de produção cultural pode ser relativizada pelos circuitos de intercâmbio artístico que se entretecem sobre as fronteiras meridionais.

Muito mais do que uma estratégia de publicitários e grandes gravadoras, as novas dinâmicas de contato e interação entre rioplatenses e riograndenses refletem o interesse dos próprios artistas em promover um diálogo de ritmos concebidos como semelhantes sob diversos aspectos. Centro e periferia, no contexto da cultura brasileira, se esfumaçam diante das atuais tendências pressupostas pelo contato transnacional. Os gaúchos estão sabendo aproveitar-se da sua condição de “fronteiriços” para formar conclaves ou referências alternativas do fazer musical no “fim dos fundos da América do Sul”. Isto é entusiasmante, porque alenta a diversificação do nosso repertório musical e sinaliza a emergência de outros horizontes para músicos jovens que buscam visibilizar sua arte e têm dificuldade (ou não querem) de disputar mercados esgotados como os de São Paulo e Rio de Janeiro.

Por fim, acho interessante ressaltar que em outros âmbitos da produção de saber e arte há iniciativas semelhantes àquela proposta por Vitor Ramil e seus “novos gaúchos”. Na academia, na moda e na gastronomia (campos tão díspares!) vemos mobilização no sentido de fomentar elos perenes que tornem possível a circulação de conhecimentos e técnicas no marco de espaços de legitimação não hegemônicos.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Milongas, compadritos e cadiueus: poética da instabilidade

Essa coisa do tango sempre me chamou muito a atenção. Sempre não. Desde uma pré-adolescência que, vez que outra, eu fazia questão de matizar com pitadas de melancolia. Melancolia é palavra chave para essa ousadia que vou plasmar nas linhas que seguem.

Lembro-me de quando, não sei exatamente por que, comentei com minha avó acerca do fascínio que a sinuosidade do tango dançado exercia sobre mim. Ela entusiasmou-se. Vieram-lhe à mente imagens dos anos quarenta e cinqüenta, quando certos porto-alegrenses se arriscavam a esboçar cadências tangueiras e boleirescas em bailes realizados sabe-se lá onde. A avó alentou-me numa tentativa inicial de aprender tango. Não tive muito êxito, uma vez que o corpo cansado da matriarca há tempos perdera aquela disciplina que o gênero rioplatense lhe havia imposto muitas décadas atrás. De todas as maneiras, fiquei entusiasmado com a perspectiva de converter-me num milongueiro. Anos depois, com Juliana, arriscamo-nos em nova empreitada tangueira. Desta vez, ajudados por uma anciã iniciadíssima nos ritmos boêmios das nostálgicas urbes do Prata. Chegamos a aprender alguma coisa, o suficiente para riscar quadrados e pêndulos no piso das milongas públicas de Montevidéu – o berço esquecido de La Cumparsita.

Hoje em dia, estou novamente distanciado do tango dançado. Faço questão, contudo, de manter-me identificado com a “atmosfera ideológica do tango”, um espaço subjetivo que inventei para mim a modo de refúgio. É das profundidades desse “rincón de mente (y demente)” que arranquei as conjeturas que amontôo a seguir.

Abundam hipóteses sobre a etimologia da palavra tango. Interesseiro que sou, opto por duas delas. Mesmo aparentemente contraditórios, os dois postulados que adoto para este texto dialogam profundamente entre si (pelo menos no plano da poesia). Há quem diga que “tango” é uma onomatopéia que remete ao som dos tambores africanos, instrumentos que compunham, primitivamente, a harmonia do tango. Aqueles que refutam esta proposição postulam que o tambor nunca conformou o repertório de instrumentos utilizados para produzir a música tango. Inicialmente, utilizava-se flauta, violão e violino. Depois se introduziu o bandoneón alemão. Outra suposição, esta mais aceita, sugere que a palavra tango teve origem no Oeste da África e aludia a “lugar fechado”, ou seja, lugar onde se dançava em área fechada. Pois bem, as duas teorias nos dizem a mesma coisa por caminhos diferentes: o tango tem origem (ou, pelo menos, influência) africana e chegou à Argentina através do Oceano Atlântico. Os primeiros “tangos” (aqui me refiro ao lugar de dança e não a música em si) eram, provavelmente, espaços de ritualização, pela música, de uma liberdade impossível no plano das relações de trabalho escravistas.

Desde seus primórdios, o tango se prestou a resolver eficazmente algumas contradições. A antinomia brutal entre negro escravo e branco livre, que sustenta uma época marcada pela profunda hierarquização e racialização da sociedade argentina, era transitoriamente resolvida – ou transposta – nos tangos (me refiro, novamente, a lugares). Os encontros festivos dos negros, calcados na melancolia e nos ritos de atualização identitária, permitiam a construção da dignidade e da solidariedade entre grupos subalternos. Mais ainda, garantiam a existência social dos negros para além dos ditames escravocratas.

Promovo, agora, um trânsito geográfico e cultural que me arremessa ao Mato Grosso (Brasil), mais especificamente à sociedade Cadiueu. Espero que os seguintes desdobramentos deste escrito me poupem do adjetivo de “descabelado”. Tentarei manter um mínimo de coerência, acreditem. Vejamos como me viro.

Os índios cadiueu constituem uma sociedade rigidamente hierarquizada, composta por castas endogâmicas e absolutamente despojada de qualquer subdivisão horizontal. Lévi-Strauss chegou a afirmar que o modelo societário cadiueu favorece uma espécie de racismo às avessas, induzindo os indígenas a buscarem cônjuges em outras tribos mediante o rapto de mulheres ou a incorporação de prisioneiros, por exemplo. Outras tribos da região, como os Mbaiá, também possuem uma estrutura de castas semelhante a dos cadiueu. Entretanto, o problema da ultra-hierarquização que pode colocar em xeque a própia existência do grupo social, foi por eles resolvido através da introdução de um sistema de metades exogâmicas que se sobrepõe às castas e cria fluxos de reciprocidade. Os cadiueu, mais conservadores, não lograram contornar a rigidez das castas, mas foram sensibilizados pelas alternativas colocadas em prática por grupos étnicos vizinhos. O remédio que lhes faltou para gerar soluções propriamente sociológicas às suas contradições, não podia escapar-lhes por completo. “E, já que não podiam tomar consciência dele e vivenciá-lo, puseram-se a sonhá-lo (...) de forma transposta e, na aparência, inofensiva: em sua arte” (palavras do velho Lévi-Strauss). A arte praticada pelas mulheres cadiueu é sedutora e complexa, expressão da busca de uma sociedade por instituições que poderia ter, não fossem os impedimentos materializados nos seus interesses e crenças. A pintura corporal cadiueu opõe, harmoniosamente, formas curvilíneas e duros ângulos, registrando, metaforicamente, a dualidade entre reciprocidade e hierarquia que eles sequer puderam consolidar na dimensão da consciência e da vida social.

Feita esta aparente interrupção na linearidade do texto, me dedico, agora, esboçar elos e aparar arestas. Antes que nada, regressemos à Buenos Aires de meados e século XIX e inícios do século XX. Naquela época, a metrópole argentina (única em um país de “pueblos”), fervilhava com a chegada de enormes contingentes imigrantes procedentes da Itália e da Espanha. O cercamento dos campos (“alambramiento”) e um subseqüente êxodo rural inundaram os cortiços com gauchos e toda sorte de mestiços que ganhavam a vida traficando gado e peles nas enormes pradarias que se estendiam ao longo de boa parte da província. Negros recém libertos vagavam pelas ruas em busca de empregos pouco valorizados nos frigoríficos da capital ou em outros redutos duma indústria nascente. Foi este o contexto social de surgimento do tango enquanto gênero musical. Era a época embrionária do tango, de acordo com classificação proposta pela ousada antropóloga Maria Eugenia Rosboch. Negros, gauchos e imigrantes plasmaram, nos arrabaldes, um ritmo que repercutiria intensamente em diversas esferas da sociedade argentina pelos seguintes 60 anos.

A Argentina, entre os séculos XIX e XX, era profundamente hierárquica e eurocêntrica. Os discursos oficiais sobre higienização e nacionalidade orbitavam em torno da paranóia do branqueamento. O problema indígena estava sendo paliado por meio do etnocídio e o escurecimento de Buenos Aires seria combatido com a imigração de europeus. Dois coelhos mortos numa cajadada: indústria abastecida de mão de obra e ruas abarrotadas de caucásicos. O imigrante, no entanto, da mesma forma que negros e gauchos, viu frustradas suas possibilidades de inserção/ascensão social. Sobre ele pairava a inabalável figura do criollo, esse descendente de espanhóis em primeira ou segunda geração que concentrava poder econômico e político, instilando-se no plano das representações coletivas como protótipo do homem ideal, da realização completa da masculinidade e, por conseguinte, da cidadania. Eventualmente, um punhado de investidores estrangeiros ou novos capitalistas argentinos conseguia driblar essa efígie pujante do criollo, inventado modelos alternativos e quase-legítimos de hombridade. Eram exceção. Durante décadas tudo o que divergia do criollo tornava-se dissidente e estava mais ou menos fadado à frustração. O problema é que os dissidentes formavam maioria. São impressionantes as façanhas da dominação!

O tango original se constrói com base numa série de incertezas. Estas incertezas eram as mesmas que permeavam os próprios sujeitos que foram artífices daquele gênero musical. O gaucho, proto-etnia fracassada (nas palavras exageradas de Darcy Ribeiro), fruto da índia estuprada pelo filho do fidalgo, é um emblema “daquilo que não pôde ser”, da condição dolorosa de bastardo da sociedade colonial e eco perdido da época de florescimento das populações aborígenes. Meio homem, marginal das masculinidades hegemônicas. Os negros e os imigrantes se identificam com o gaucho pela melancolia que carregam. Os primeiros preservam em seu imaginário uma vinculação com a África mítica e purificada e não abdicam de suas redes de sociabilidade; nem podem fazê-lo porque é através delas que lograrão uma tênue participação na esfera pública, marcada sempre pelo estigma da raça. Os segundos trazem consigo línguas e costumes que, ao contrário de serem anulados, começam a pautar a própria forma de falar nas periferias, convertidas em verdadeiros guetos que desmentem em larga medida a ilusão de prosperidade e inclusão pugnada pelo sonho de emigrar para as Américas. Marta Savigliano, que propôs a hipótese do “proceso de colonización”, concebe o tango como uma dança melancólica, uma forma de amnésia que encerra um significado amargo e profundo cuja raiz se encontra no processo de colonização da sociedade aborígene e no agitado processo de imigração europeu que marca as três últimas décadas do século XIX. Pronto! Está preparado o terreno para reintroduzir os cadiueu nessa trama. Antes, contudo, lanço ao ar mais algumas afirmações que, dirão vocês, têm muito de inconseqüência. Pode ser. Por sorte este é um esforço poético e não analítico.

Os homens que construíram o tango em sua época embrionária eram machos subalternos, fantasmas desprezíveis à sombra daquilo que se entendia por cavalheiro. Estavam inseguros. Mesmo o feroz compadrito (espécie de cafetão que bancava as milongas e gozava de certo carisma nos círculos sociais “arrabaleros”) era narrado, freqüentemente, como “refém” da sua passionalidade, envolvendo-se em dramas amorosos que, não raro, invertiam os papéis sexuais tidos como ideais. Aqui, novamente, o tango (desta vez convertido em música), se presta à resolução de contradições. Da mesma forma que os cadiueu projetaram na arte a solução de aspectos conflitantes da sua vida em sociedade, o homem tangueiro plasmou nas letras e cadência do tango as soluções – ideais – que socialmente jamais poderia acessar. Julie Taylor, sem chegar tão longe quanto eu (afinal, ela é uma respeitada antropóloga estadunidense, tendo sido orientanda do próprio George Marcus), assume que as letras de tango e a coreografia da dança mostram a agressividade e violência do homem frente à passividade da mulher, atitude que contrasta com a insegurança característica na identidade do tangueiro. Estruturalistão? Não se precipitem! Dêem-me mais uma chance. Como havia prometido, esbocei elos, correlações, mas ainda não aparei arestas. As últimas linhas do texto estão dedicadas a tal tarefa.

Os cadiueu incorporaram uma dualidade (horizontalidade e verticalidade = reciprocidade e hierarquia = linhas sinuosas e duros ângulos) que tribos vizinhas haviam implementado para resolver o ultra-seccionamento grupal; mas sua apropriação desta dualidade inevitável não se realizou “sociologicamente”. Materializou-se em arte. Os tangueiros, ao elaborar seu repertório inicial de letras e ritmos, dialogaram com padrões hegemônicos e trataram de reproduzi-los – ajustando e transformando códigos aristocráticos às sensibilidades do seu grupo social e compondo assim uma lírica caracterizada pela dualidade tão típica da moralidade moderna –, mas, como já foi dito, só puderam alcançá-lo no plano mais formal do gênero tango. Sua experiência de classe, suas vivências cotidianas, a agência inevitável das mulheres que os circundavam, decretaram a impossibilidade de concretização daquela performance da masculinidade ideal para além das representações cristalizadas em letras e passos musicais. As classes populares (o tango, em seu período embrionário era uma manifestação da cultura popular), consciente ou inconscientemente, podem tanto reproduzir e ajustar como impugnar caracteres da cultura legítima. Essas dinâmicas estão marcadas, logicamente, por conflitos de “fronteira” ou disputas internas. Em que medida, por exemplo, as mulheres que circulavam (e dançavam) nas milongas aceitaram, negociaram ou rechaçaram as noções de masculinidade embutidas nas letras e na dança do tango? Maria Eugenia Savigliano, olhando para as milongas contemporâneas, sugere que a incorporação simbólica do tango à identidade nacional pode ter seu conteúdo ressignificado, em particular quando ela estuda a performance da dança, onde observa que se estabelecem relações marcadas por “um principio de equidade de gêneros mais do que de dominação masculina”.