domingo, 20 de dezembro de 2009

O Ritual do Mate

Caros,
pensei duas, três vezes, antes de fazer esta postagem. A proposta inicial do blog era veicular textos, poesias, inquietações nossas e escritas por nós. O texto que lhes apresento logo abaixo, foi escrito por outrem. Trata-se de uma reflexão sobre o ritual do chimarrão, feita pelo cronista argentino Juan Sasturain e traduzida por mim ao português. Justamente por ser uma tradução, acho que vale a pena compartilhá-la com vocês, já que as traduções incorporam muito da estética e da subjetividade de quem as realiza. Eis o grande drama de certos puristas, drama este que, pelo menos em algum momento já se abateu sobre a consciência de diversos aspirantes a etnólogo.
A tradução é algo que se propõe, que se oferece à apreciação dialógica mas que serve, na maioria das vezes, aos interesses e dramas do grupo em que se insere o próprio tradutor. Claro, há vezes, principalmente nos meandros do mercado editorial internacional, em que os interesses econômicos são recíprocos, existem do lado traduzido e do lado que traduz. Mais correto seria afirmar que qualquer tradução contempla, pelo menos, as aspirações do tradutor.
O texto a seguir (ou, melhor dizendo, minha decisão de publicá-lo) reflete uma busca por semelhanças que ando tentando perpetrar. Reflete um "olhar poético ao sul desnacionalizado", mas, nem por isso, despojado de inquietações nacionais. Quem sabe, o que desejo é arrefecer a brutal distância das pradarias estendendo pontes de identidade sobre o mar verde do pampa, esse bioma que isola e une.
Com relação a temática da crônica, temos um intento quase antropológico de Juan Sasturain em construir o mate enquanto metáfora de certas motivações que conduzem os homens a relacionarem-se entre si. Enfatiza-se, também, a figura do "cevador", muitas vezes apagada, colocada em segundo plano, mas que, na verdade, constitui-se como eixo central no ritual do mate desde seu início até os desdobramentos finais.
Bom, proponho, a seguir, minha tradução. Entre parênteses, há algumas N.A.s - ou seja, Notas do Alex - que podem ajudar na contextualização das imagens evocadas por Sasturain.
O Ritual do Mate (por Juan Sasturain)
É muito estranho o verbo cevar. Na fala cotidiana dos argentinos (NA: e dos uruguaios e dos riograndenses) se usa quase com exclusividade para aludir ao trecho intermediário do ato/ritual de matear: é chamada de "cevar" a operação que se interpõe entre preparar o chimarrão e tomá-lo. Cavar - a arte de cevar, referida e comentada poe Amaro Villanueva em memorável livro - é pontualmente o coração do ritual: largar água na erva, dar forma à infusão, fundá-la. Aí está a verdade, o ponto chave, o que realmente importa.

O chimarrão pode ser tomado por uma pessoa sozinha, em dupla ou, como se supõe que ocorreu nos primórdios, em grupo. Quando se toma chimarrão sozinho, freqüentemente é o próprio sujeito quem prepara, ceva e consome. Isso fazem, hoje, muitos homens e mulheres, de manhã antes de sair ou enquanto trabalham no computador. Entretanto, nem sempre foi assim: a tarefa de fazer/cevar o mate foi, durante muitas décadas, tarefa feminina, extensão "natural" do trabalho da mulher (tomasse ela ou não o chimarrão; fosse ela esposa ou empregada) na cozinha: "Me ceva uns mates aí, Catarina...", diz o valentão batalhador do terrível "Amasijo Habitual" (NA: letra de tango do célebre Carlos Púa: "cebame un par de mates, Catalina..."). E sem ir tão longe: vi meu pai tomar mate durante quarenta anos em casa e nunca foi ele quem preparou nem cevou.

É que, tacitamente ou em teoria, o cevador é aquele que sabe (ou deveria saber), o que conduz a cerimônia. Assim sendo, desde o início, o cevador de turno pode rechaçar a água por estar fria ou por estar fervida, corrigir a "montagem" do chimas, tirar erva ou colocar mais e, já no exercício de seu cargo, é ele quem, depois de descartar as primeiras porções frio-amornadas, dispõe a intensidade e o ângulo de incidência do jatinho d'água (provindo este de garrafa térmica ou chaleira) - rente à bomba, nunca diretamente sobre a verde superfície - e, enquanto vai molhando a erva por setores, oferece o primeiro e depois os sucessivos mates, até diagnosticar, em algum momento, seu definitivo esgotamento.

O saber e o critério do cevador são questões chave por uma simples razão: o mate não é, ele vai sendo. Assim, quando um recém chegado se incorpora na roda, pode perguntar como está o chimarrão. Ou seja, qual é o seu estado. Como quem pergunta pela saúde de um doente ou pelo aspecto do céu, ou pelas perspectivas de um dia no geral. Há certas respostas que, expostas aqui a título de exemplo, dão conta deste gradiente: recém feito; é novo; tomável/aceitável; tá dando ainda; meio passado; passado; frio; gelado; lavado; esquenta a água; faz outro novo lá.

Porque o mate, como o pão da padaria, tem uma duração, descritível em termos de parábola, cuja medição não se ajusta a nenhuma nomenclatura rígida do tipo "data de validade". O próprio mecanismo da sua geração, sempre atualizado, torna os mates sempre únicos e diferentes: não há, ao longo de uma série, do primeiro ao vigésimo - digamos -, dois iguais. Nunca tomamos o mesmo mate, diria Heráclito. As variáveis - água e erva, sobretudo - jamais são as mesmas. Nos primeiros trechos (mates) partimos de um máximo de temperatura e de um mínimo (grau zero) de umidade da erva. É aí que se dá a máxima - não necessariamente a melhor - concentração de sabor: erva homogênea que sobe em bloco, com espuminha. Depois, tem uma zona intermediária na qual os extremos arrefecem - enquanto a água amorna, a erva fica empapada - e o sabor, paulatinamente, retrocede em intensidade, junto com a espuma em fuga e a menor elasticidade e capacidade de resposta da erva, tendente, cada vez mais, a ficar grudada no fundo, deixar a água sozinha e com isolados náufragos na superfície: sintoma irreversível de esgotamento funcional. O mate, como tal, morreu.

Quanto dura esse processo? O mate é humano, sumamente humano. As vezes, os elementos constitutivos não são nobres - água duras ou excessivamente cloradas, ervas ordinárias, saturadas de pó e galhos - e tudo se deteriora precocemente, de saída no mais. Em outros casos, falhas de conceito na origem - temperatura da água, quantidade de erva - costumam ser fatais e fazem o chimas morrer jovem. Na quarta servida, o mate já está virado em água. Outras vezes, o cuidado e o pulso do cevador, a zelosa administração da água e o controle sobre os tomadores irresponsáveis - aquele que mexe a bomba - ou desatentos - o que toma devagar, deixa a água acumular e esfriar sem tomar - costumam garantir uma longa vida produtiva e satisfatória para o chimarrão.

Neste ponto, cabe voltar ao início. Cevar significa, em primeiro lugar, alimentar ou - para ser mais claro e específico, numa segunda acepção imediata - alimentar com uma intensão que transcende a necessidade ou o desejo do alimentado e responde mais a um designo do cevador. Assim, pode-se cevar alguém - como o peru, para comê-lo no Natal - jogando com sua inaptidão ou apetite excessivo. Também é possível autocevar-se: um tigre cevado é vítima da sua experiência; provou - caçou e gostou - a carne humana e se acostumou. É perigoso para si mesmo e para os demais. Assim, cevar é, por correlação - dou um passo mais, na mesma lógica de raciocínio -, pôr a isca (NA: No original, o autor faz um trocadilho com o verbo "cebar" e o substantivo "cebo", que significa isca no castelhano utilizado na região do Prata): oferecer alimento atraente para que o receptor belisque, coma, entre... A gente pega os peixes assim; os homens também. Cevar é, desta forma, seduzir. Te dão comida para te converterem em comida. Aquele que se cevou - se cevou ou foi cevado - perde. Está acostumado a receber e passa ser escravo ou vítima do seu desejo, da sua necessidade. É um viciado; por isso, cevar-se é, também, exceder-se.

Cevam-se - sério mesmo! - também os explosivos. Quando pequenos, usávamos a palavra "cebitas" para referir-nos às minúsculas (e ineficazes) espoletas que carregavam os revólveres de brinquedo para provocar, com o cão, as pequenas explosões que simulavam disparos... Revólveres de "cebita", se chamavam. Assim, o ato de cevar tem sempre algo de segunda intensão, dissímulo ou engano.

É coerente não desdenhar mencionados aspectos quando falamos do ato de matear. Porque, voltando à esgrima nacional do porongo, da erva e da água quente, se escreveu muito - partindo da tradicional administração feminina da "cevadura" - sobre a "linguagem do mate", os significados erótico-amorosos que podiam depreender-se a partir de cada mate (frio, amargo, doce, longo, curto) que uma mulher cevava para um homem. Cevar era exatamente uma forma de seduzir/rechaçar, dialogar intencionalmente. O mate como isca e arma ao mesmo tempo. Como metáfora.

Um pouco disso tudo existe. Cada vez que cevamos/tomamos mate, a cerimônia atualiza esses tácitos significados.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Era azul e tu criança

Apareceste onde vivo
em temor claustrofóbico
e ânsias loucas de sei-lá-o-que.
Apareceste no recôndito íntimo
que é algibeira do trauma,
e esquife do Édipo.

Ali onde vivo e sobrevivo
apareceste.
Eras suor e lágrimas.
Eras filtro da malha leve do suéter.
As tiras de couro aferradas aos pés
longilíneos.
A distância medida em anos-luz
entre lunares que constelam
tuas espáduas.

Apareceste ali onde sobrevivo e resisto,
onde encontro o combustível de
amor e ódio que engendra
minhas batalhas e meus caminhos.
Foste o semi-perfil de criança
num passaporte novo e azul.
Foste a tez onde o arco-íris
não esmoreceu; a voz descontínua
que prolonga em tons altos e vocálicos
o crepúsculo dos verbos.

Quando apareceste ali onde resisto e ressinto,
onde sou gradiente contínuo do azul
ao vermelho,
impuseste a tênue ruptura da verdade
sussurrada.
A ruptura que nos arremessa
ao centro ideal de qualquer coisa
e nos torna potência com o
dom de devir no mais radical dos extremos.

Ali onde rabisco minha escatologia,
apareceste.
Produziste o belo com os
dejetos ocos e solícitos duma
catarse salobra, ingênua e risonha.
Catarse assimilada, quilômetros atrás,
pelo murmúrio do Rio mítico
cuja margem é marrom de Portos
e o leito, coágulo de sangue, madeira
e níquel.

Apareceste onde sou terno e tísico.
Desabaste da estante de Jacarandá qual
brasão federal, qual ídolo laico e burguês.
Teu estrondo em meu íntimo
foi de fechadura antiga, bronze denso
e oxidado. Corredor vazio.

Debruçaste-te pesadamente sobre
o que posso ser
com a naturalidade de quem
apenas reforça o mais belo
dos seus gestos ao advertir
o reflexo redondo da objetiva
fotográfica.
Naturalidade de quem rechaça,
com motricidade fina,
a beleza do espontâneo.