terça-feira, 27 de outubro de 2009

¿Qué pasó en Uruguay?

Às 22h de sexta-feira (24 de outubro), partiu do Theatro São Pedro, no centro de Porto Alegre, o ônibus fretado que levaria um grupo de quase 50 imigrantes uruguaios para votar em Montevidéu. A viagem foi intensa, embalada pelo violão e por vozes que cantavam velhas músicas do combate e do carnaval. Cruzamos a fronteira por Jaguarão – palco de remotas incursões semi-clandestinas ao território uruguaio durante a agonia da ditadura – em meio a relâmpagos e lufadas dum vento tempestuoso. A chuva se abateu sobre a aduana quando ainda fazíamos os trâmites de documentação. Tempestade breve e ruidosa, chuva horizontal, bagagens encharcadas.

Recém havia amanhecido quando adentramos pelas ruas de Minas. Os uruguaios procuravam um lugar para comer. Queriam encontrar, também, comitês da Frente Ampla (Encuentro Pogresista – Frente Amplio – Nueva Mayoría, maior partido de esquerda oriental) onde pudessem abastecer-se do material de campanha necessário para decorar o ônibus. Numa confeitaria de esquina, onde atendiam mocinhas irrequietas, os viajantes desfrutaram dos doces que, fazia tempo, não comiam. Pediram café, capuccino, sucos, bizcochos, estavam eufóricos e a expressão dos seus rostos me alegrava. Terminado o desayuno, vi Gustavo chegar com rolos de faixas e cartazes que prontamente seriam afixados na carenagem do ônibus. O artesanato político levou-se a cabo com ajuda de frenteamplistas locais solidários aos companheiros chegados do Brasil. Partimos imersos numa atmosfera de balões e pasacalles que chamava a atenção dos pedestres e motoristas.

Aos poucos, Montevidéu foi crescendo ao nosso redor, e com ela vieram lembranças de outros tempos. A infância, o passado dos uruguaios que viajavam comigo irrompia em cada rua, nos parques, na rambla. “Ali eu nasci”; “...depois me mudei para lá”; “Aqui havia um presídio”. Quando os edifícios de Pocitos começaram a aparecer, uma voz feminina comentou, provocadora: “Podríamos haber entrado por otro barrio, más popular, donde realmente está la gente”. Um homem disse: “Por qué él [o motorista] no toca bocina?”. Alguém respondeu: “yo le pedí que tocara, pero no hay caso”. Um terceiro: “Ah! Ahora si la está tocando!”. Chegamos à antiga terminal de ônibus depois do meio-dia. Frenteamplistas concentrados no local ofereceram uma calorosa recepção aos seus distantes compatriotas. Abraços, re-encontros, tios, primos, sobrinhos, compañeros, camaradas e a imprensa. Estes foram os elementos que compuseram a paisagem da nossa chegada a Montevideo. A partir daí, o grupo dispersou-se entre hotéis e casas de parentes.

Com Mabel, tomei um coletivo até a Puerta de la Ciudadela, onde meu amigo Santiago nos esperava. Deixamos as mochilas no seu apartamento e fomos ao Mercado del Puerto comer empanadas. O sol amornava a Ciudad Vieja e um já conhecido ventinho fresco filtrava-se, tranqüilo, pela simétrica retícula urbana. Depois do almoço, Mabel foi para a casa de uma tia no Cerro. Santiago e eu fizemos longo passeio de bicicleta pela Rambla. Andamos muito, acompanhamos a movimentação eleitoral em Pocitos – onde militantes frenteamplistas, blancos e colorados agitavam suas bandeiras e cantavam jingles de campanha –, tomei mate e ofusquei-me com os reflexos amarelados da luz solar sobre o Rio-Mar. Entrada a noite, violamos a lei seca num discreto bar próximo ao Bulevar España.

O domingo, dia da votação, estava ensolarado. Com câmera fotográfica a tira-colo, percorri, na companhia de Santiago, Ernesto e Eduardo – estudante brasileiro de antropologia – o Centro da cidade. Incursionamos em sessões eleitorais das ruas Estados Unidos e Maldonado, onde meus dois amigos orientais depositaram, entusiasmados, seu voto pela esquerda e seu aval aos plebiscitos de anulação da lei de anistia e aprovação do voto epistolar (voto no exterior por carta). Nas ruas, automóveis embandeirados e bozinaços coroavam a festa eleitoral. Tremulavam, pelas esquinas, dezenas de estandartes frenteamplistas sobre varais improvisados. Das janelas dos edifícios assomavam mãos que faziam o “V” da vitória. Ao longe, vozes isoladas gritavam “vamos arriba el Pepe” (em referência a Pepe Mujica, candidato da Frente Ampla à Presidência da República). Caída a noite, chegou o momento de acompanhar os primeiros resultados difundidos pela televisão.

Primeiro, euforia. Santiago olhou-me atônito e empolgado. De acordo com o porta-voz da “encuestadora” Factum, ainda não era possível dizer se haveria segundo turno. Com relação aos plebiscitos, provavelmente a lei de anistia seria anulada mas aos uruguaios residentes no exterior se lhes negaria o direito de votar. Depois, desânimo. Uma segunda projeção, esta embasada em amostra mais representativa, confirmava o segundo turno. Previa, também, a derrota do “SÍ” em ambos plebiscitos. Eu não podia acreditar, estava diante de um revés significativo para as demandas políticas não só da Frente Ampla, mas também dos muitos uruguaios residentes no exterior, meus companheiros de viagem, meus solícitos interlocutores. Senti sono, um sono evasivo, mas, ainda assim, decidi ganhar a rua rumo ao ato da esquerda nas imediações do hotel NH Columbia. Chegamos tarde, depois do pronunciamento de Pepe Mujica . Muitos simpatizantes da FA se retiravam. No lugar, permaneceram jovens militantes de distintos setores oficialistas que festejavam ao som do rock argentino, uruguaio e, mais tarde, da cumbia. Encontrei uma conhecida chamada Pia, militante do Partido Socialista: “ya lloramos todo lo que podríamos llorar” - disse. Lamentou profundamente a derrota nos plebiscitos: “La gente no entendió nada”. Consolou-se afirmando que seguiriam lutando porque sua opção pela esquerda não dependia de eventuais revezes eleitorais.

A noite do domingo acabou tarde e minha segunda-feira iniciou às 15h. Mal tive tempo de comprar o jornal La República cuja alentadora manchete principal anunciava: “En noviembre Mujica será el presidente: obtuvo ya el 49,18% de los votos válidos”. Por volta das 18h, cheguei à antiga rodoviária onde já me esperavam os militantes da FA com quem empreenderia viagem de retorno. No ônibus reinavam a consternação e a perplexidade. “Qué pasó?” era uma pergunta corrente. Luiz quis saber minha opinião a respeito do resultado das urnas; arrisquei alguns palpites que, depois, serão compartilhados com vocês aqui no Porta Prosas. Por agora, me limito a transcrever a apropriação feitaNegrito por Gustavo duma célebre frase de Eduardo Galeano sobre o “caráter nacional” uruguaio: “los uruguayos somos tres millones de anarquistas conservadores y egoístas”.
Fotos: Jovem uruguaia vota em circuito da rua Maldonado; Militantes da Frente Ampla em comemoração próximo ao hotel Columbia. (Alex Moraes)

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Axel Honneth em Porto Alegre

Vinte anos depois da vinda de Jurgen Habermas à cidade, Porto Alegre recebeu mais um brilhante filósofo: Axel Honneth.
Nascido em Essen (Alemanha), em 1949, tornou-se professor de filosofia na Universidade J. W. Goethe em Frankfurt em 1996 e desde 2001 é diretor do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt (ou, mais conhecidamente, a "Escola de Frankfurt"). Seus escritos concentram-se na área da filosofia social, política e moral, formando um ambicioso programa de pesquisa voltado tanto para a explicação teórica quanto para a compreensão crítico-normativa das relações de poder, reconhecimento e respeito nas sociedades capitalistas modernas.
Nos dias 29 e 30 de setembro e 1º de outubro de 2009 foi realizado o "IV Simpósio Internacional sobre a Justiça", organizado pela PUCRS e pelo Goethe-Institut Porto Alegre. Eu estive por lá e quero registrar, aqui, alguns pontos importantes das palestras.
Foram três dias do mais profícuo debate intelectual. Nos dois primeiros dias, foram realizadas leituras por Honneth seguidas de debates com interlocutores. O que mais agradou o público, creio eu, foi o diálogo do segundo dia, entre o professor Honneth e Hans-Georg flickinger. Isso inclusive obrigou o primeiro a reconsiderar alguns pontos inprecisos da "Teoria do Reconhecimento". Honneth resgata o conceito de "luta por reconhecimento" do jovem Hegel. O propósito da teoria é dar conta da "gramática" dos conflitos e da "lógica" das mudanças sociais, tendo o objetivo mais amplo de explicar a "evolução moral" da sociedade.
No artigo de Denilson Luis Werle, publicado na revista "Mente, Cérebro & Filosofia", nº 8, temos uma clara explicação sobre os fundamentos da "luta por reconhecimento". Diz Werle que "baseado em Hegel, Honneth identifica três dimensões do reconhecimento distintas, mas interligadas. A primeira consiste nas relações primárias baseadas no amor e na amizade, e diz respeito à esfera emotiva, em que é permitido ao indivído desenvolver uma confiança em si mesmo que é indispensável para seus projetos de auto-realização pessoal. A segunda dimensão consiste nas relações jurídicas baseadas em "direitos". Trata-se da esfera jurídico-moral, em que a pessoa é reconhecida como autônoma e moralmente imputável e desenvolve sentimentos de auto-respeito. A terceira e última dimensão é aquela que concerne à comunidade de valores baseada na "solidariedade social". Honneth está pensando na esfera da estima social, na qual os projetos de auto-realização pessoal podem ser objeto de respeito solidário numa comunidade de valores" (Pg. 55).
Apesar de entender pouco sobre as teorias tratadas na ocasião, alguns meandros acerca da teoria do reconhecimento foram esclarecidos. Ela permite, por exemplo, identificar conflitos sociais em nível pré-linguístico, ou seja, aqueles ainda não expressos racionalmente.
Duas ideias eu considerei importantes para, quando for possível, pesquisar. Em Hegel, o capítulo sobre a "sociedade burguesa" do livro Filosofia do Direito, pois aí temos a descrição do que se entende atualmente por "esfera privada". A outra referência está em Durkheim que forneceu a chave para descortinar a "infraestrutura moral" da sociedade através da análise de práticas punitivas. Ou seja, o que a sociedade condena através de sanções.
O terceiro dia foi mais suave. Respondeu a questões mais pessoais (como o sentimento de ocupar a cadeira que foi de Horkheimer, Adorno e Habermas e sua predileção por Bob Dylan). Sem entrar nos pormenores das críticas dirigidas aos seus antecessores e também das heranças apropriadas e transmitidas, acho importante destacar o seu distanciamento com relação ao conceito de "negatividade". Para ele, a teologia expressa na negatividade se devia muito ao fato de Horkheimer e Adorno serem judeus, oriundos de famílias tradicionais, etc.
Acredito que um dos segredos para a Escola de Frankfurt se manter viva e criativa se deve à prática incessante da crítica interna e do diálogo construtivo com outras tendências teóricas. Admitir que as teorias são imperfeitas, embora mais que necessárias.
Entendi a necessidade de multiplicarmos por mil a compreensão que fazemos da vida social. Como? Aprimorando conceitos, rejeitando teorias simplistas e dialogando abertamente com os outros, mesmo quando não haja concordância.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Se nos fue Mercedes



UNA COSA SOSA
por Juan Sasturain

Mercedes era una cosa Sosa.
Con mayúscula, digo: tucumana .
cantora sola, voz soberana,
clase de una, negra y golosa.

Pero ante todo, fue generosa
con el verso y la oreja americana.
Nos cantó a don Ata y a la hermana
Violeta, al Cuchi y a Zitarrosa.

Mercedes hizo su destino en vida.
Más allá del aplauso y de la fama
encarnó a la Tierra. Confundida

en piedra y consumida en llamas
queda la imagen final, tan parecida
a un Buda criollo, a la Pachamama.

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Estava em um quarto de hotel da capital argentina quando, no passado domingo, me chegou a notícia de que Mercedes Sosa morrera. Dias antes, havia lido no “amarillista” diário Crônica que La Negra encontrava-se hospitalizada em estado grave. Não levei muito a sério tal informação por conhecer o caráter sensacionalista das matérias que se publicam em Crônica e por saber que Mercedes Sosa não podia morrer. Fiquei realmente impressionado quando me disseram que o corpo da cantora já estava sendo velado no Congreso de la Nación.

Desde pequeno, escutava em velhos vinis as canções interpretadas pela Negra. Já adolescente, escolhi Mercedes como guia musical e adentramos na atmosfera do folclore argentino. Conheci, graças à Mercedes, o célebre Atahualpa Yupanqui, e emocionei-me reproduzindo à exaustão temas como “Lunita tucumana” e “Guitarra dímelo tú”. Interessei-me pela nova canção chilena de Violeta Parra ouvindo a pujante voz da Negra entoar “Hermano dame tu mano”. A tucumana Sosa, desde que irrompeu entre minhas preferências musicais, trouxe influências que decantaram permanentemente neste manancial que concebo como identidade pessoal. Escutar suas músicas seguro de que, não tão longe do Porto Alegre, Mercedes vivia e cantava, destilando sua tristeza em versos, sempre foi um consolo para mim. Sabê-la viva e imaginá-la transcendente conduziu-me a duvidar de que, numa madrugada qualquer, La Negra poderia se calar definitivamente. Daí o nervosismo e a perplexidade que se abateram sobre meu peito no último domingo.

Perto da 1h da madrugada, cheguei com María Pia, Andrea, Santiago e Juliana ao parlamento argentino. Não havia fila nem multidão. “Te agradeço pelo retrato que nos trouxeste deste continente”: esta foi a ambígua mensagem que deixei nos painéis destinados para tal fim próximo ao local do velório. Entramos calados no edifício do Congresso, caminhamos entre coroas de flores ofertadas por partidos políticos, sindicatos, famílias e empresas. Cordões vermelhos indicavam-nos por onde passar: corredores amadeirados, janelas pelas quais circulava o ar congestionado duma noite que esperava a tormenta, pequenos grupos de pessoas conversando baixinho nos cantos, cheiro das flores que desvaneciam e Mercedes. Maçãs do rosto maquiadas, olhinhos tranquilamente fechados, Mercedes. Depois de ter conhecido, ainda novinho, a obra da Negra através dos discos de meu pai, competiu-me, por casualidade, a missão despedí-la.


Deixo aqui, o enlace para uma interessante matéria de Karina Micheletto a respeito da morte de Sosa: http://www.casamerica.es/opinion-y-analisis-de-prensa/cono-sur/mercedes-la-voz-que-fue-un-continente