Se eu fosse um gato, certamente não me chamaria Glauber. Não sei, tampouco isso é nome para se dar a cachorro. De uma forma ou de outra estou aqui, roendo o último osso que o Senhor Amâncio me deu. Descontente, é verdade, mas porque tenho fome, e quando se tem fome, se quer carne e não osso. Tudo bem, um cão também sabe o seu lugar. E o meu é aqui, na casa do Sr. Amâncio.
Hoje ele não saiu. Já faz dias que não põe o pé fora de casa. Tornou a ler Virgina Woolf, está obcecado por esta literatura. Ainda não terminou No Caminho de Swann, acho que se irritou com Proust. Mais cedo eu ouvi uma conversa sua com o Padre Ezequiel. Ele contava da sua angústia, do fato de viver isolado numa cidade em que as pessoas só o conhecem como o escritor frustrado, o alcoólatra, velho solitário e manco. Eu tive pena do Sr. Amâncio. Ele não é lá muito carinhoso comigo, mas não posso negar que sempre me deu tudo. Acesso a casa, banho, cama, sofá, além de me deixar escutar as suas longas conversas com amigos e consigo próprio. É, o Sr. Amâncio tem dessas de falar sozinho. Parece um maluco, esquizofrênico, sei lá. Ele recita Camões, Rimbaud, Fernando Pessoa, Maiakovski. Imita Nietzsche com aquele bigode dele ridículo, fica no espelho contando os últimos fios de cabelo, depois ainda se masturba gritando por Anna Karina. Ah! Mais é um doido mesmo. Só eu pra entender o Sr. Amâncio. Essa Anna Karina aí que ele grita é aquela atriz dos filmes de Godard. Um pitel, diga-se de passagem, mas hoje ela deve tá caindo aos pedaços. Tem tanta carne nova aí pra o Sr. Amâncio se inspirar. Acho que o velho é uma daquelas peças raras que só se fabricam no mundo um em cada década. Excêntrico que só ele. Nunca vi alguém pra gostar tanto de cinema. Eu mesmo quando cheguei nesta casa, não gostava, não. Só com o tempo é que passei a admirar. Ele deixava a porta aberta, eu entrava. Me escondia debaixo da cadeira da sala, e assistia a tudo. Vi os clássicos do neo-realismo, A doce vida, Ladrões de Bicicleta, Teorema, vi os filmes de Bergman, O Sétimo Selo, Morangos Silvestres, vi Os Incompreendidos, de Truffaut, vi Acossado, Viver a Vida, Pierrot Le Fou, tantos de Godard, vi Buñuel, O Cão Andaluz, vi Kurosawa, Ozu, John Ford, Orson Welles, vi Cassavetes, chorei com Tarkovski, viajei com Antonioni, me apaixonei
De noite, fui até a cozinha e ouvi a conversa dos dois:
- Sabe, pai, às vezes eu acho que a vida não tem sentido algum.
- Não fale isso, meu filho.
- Mas é verdade. A gente só sofre nessa vida. Olha a mamãe, ela apanha daquele cara e ainda continua com ele. A gente que apanha do mundo, dos donos do mundo, que apanha da gente mesmo...
- Como assim? Por que você tá me falando isso?
- Porque não é justo viver assim, sofrendo e se iludindo a todo o tempo. Por que quanto mais a gente é bom, honesto, mais a gente sofre, se engana?
As lágrimas correm pelo rosto de Arthur. O Sr. Amâncio, surpreso, acaricia-lhe a mão direita e questiona o momento frágil do filho com um olhar severo.
- Eu achei que a vida tivesse um sentido, que o amor seria este sentido. Mas parece que as pessoas não desejam amar, desejam o conflito. Deixam-no de lado, trocam-no por qualquer vício, por qualquer prazer ligeiro.
- Isso é porque você ama demais, meu filho. Porque seu coração é nobre, ama como poucos. E então, nem sempre recebe resposta, recebe um afago, uma demonstração de amor tão grande quanto a sua.
- Eu queria ser como o senhor, pai. Viver sossegado, ter controle no meu coração...
- Quem disse que eu tenho controle?
- Ninguém, mas é que o senhor vive sozinho, não se prende a ninguém.
- Hoje eu vivo assim, mas porque errei. Confiei demais, não fui ousado o suficiente.
- Como assim, pai?
- Antes da sua mãe, eu me apaixonei por uma garota. Ela era incrível, adorava ler, dizia sonhar em ser escritora. Tinha um cachorro, passeava com ele pela praça perto da biblioteca. Foi lá que eu a conheci. E foi por causa dela que comecei a escrever. A gente conversava horas, falávamos de cidades, países, diversos lugares que tínhamos vontade de conhecer. Nessa época eu tinha um cabelo grande parecido com o seu, usava umas roupas coloridas. Ah! A gente se dava muito bem, era incrível conversar com ela.
- Mas não rolou nada, não?
- Não, nessa época, não. Eu tinha vergonha porque a família dela era bastante rica e eu não tinha onde cair morto. Tinha vergonha de chamá-la para sair.
- E aí?
- Aí que ela se mudou. Foi para outro estado. O pai dela ia abrir uma filial da empresa numa cidade maior. Só que antes dela partir, eu escrevi-lhe um poema, e entreguei-lhe. Ela me olhou como se já soubesse o que havia escrito no poema mesmo antes de ler.
- Hum!
- Foi isso. Ela foi embora, e cinco meses depois eu recebi uma carta
- Porra!
- Nessa época foi quando eu conheci a sua mãe. Daí, mesmo assim, fui à procura da garota. Viajei por vários lugares, escrevi bastante, e me encontrei com ela. Vivemos uma semana intensa de amor. Aí então quis me casar, viver com ela. Só que tinha o pai, ele era bastante conservador. Ela me pediu um tempo, foi toda carinhosa, prometeu falar com o pai e me fez juras. Eu confiei, já estava quebrado de dinheiro, precisava voltar pra casa. Quando retornei, encontrei meu pai doente. Tive que trabalhar duro pra pagar seus remédios. Comecei como funcionário de uma farmácia, depois relojoeiro, depois funcionário público. E nada dela me responder. Eu fiquei desesperado. Escrevia quase todas as noites. Então um dia, quando conversava com conhecidos numa festa, uma amiga dela da infância informara que ela havia mudado novamente. Eu perguntei para onde, mas ela não sabia exatamente. Tentei encontrar o seu endereço, mas nada. Meu pai faleceu nesta época, ingressei na faculdade, sua mãe também foi bastante generosa, me ajudou muito. Aí não me restou opção, casei e logo em seguida veio você.
- Essa parte pode pular.
- Pois é. Sua mãe sempre desconfiou dessa minha antiga paixão. E foi isso que fez com que a gente se separasse também. A gente brigava bastante, muito ciúme, sua mãe reclamava que eu não tinha um bom emprego, que a gente era muito pobre. Foi bem difícil. Eu já tava insatisfeito com o casamento, então um dia vi essa garota na tevê. Ela tinha se tornado atriz. Eu fiquei louco. Comecei a assistir vários filmes, procurar por ela. Nada de encontrar. Aí soube de uma peça. Viajei quinhentos quilômetros só para assistir ao espetáculo. No final, fui até o camarim, mas ela sequer me olhou nos olhos. Tinha se tornado outra pessoa. Desse dia em diante eu passei a beber muito. Sua mãe soube da história, a gente acabou separando.
- Ah! Tá vendo?
- É, mas porque eu confiei na palavra dela. Às vezes não basta só a palavra. Você tem que ir lá e fazer. Eu devia era ter ido falar com o pai dela diretamente, não medir reação.
- É, é verdade.
Mas qual verdade? A que os homens ditam a sua sorte? O Sr. Amâncio, pobre Sr. Amâncio, depois de terminar a leitura de Flush, a biografia de um cachorro narrada pelo próprio, das mãos de Virginia Woolf, deitou-se em sua cama e entendeu que o homem pode sim ditar a sua sorte, e foi então que recolheu a bendita arma e com dois tiros pôs fim à vida que eu tanto prezava. Aqui agora resto em melancolia, resto14 de março de 2009, Leon Sampaio.
2 comentários:
Belíssima contribuição para o espaço meu caro!
Forte abraço
Rodrigo
Leon!
Ótimo relato canino... Depois de ter a coragem profana de não fazer o que momentos cruciais exigem, estourar o miolos é uma atitude quase banal... mas ainda assim, não prescinde de meticulosidade. Afinal, para que uma vida seja considerada verdadeiramente malograda, não pode acabar quando bem entender, necessita coroar sua impura excentricidade com uma suspensão oficial decretada pelo protagonista.
Belo!
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