quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Era azul e tu criança

Apareceste onde vivo
em temor claustrofóbico
e ânsias loucas de sei-lá-o-que.
Apareceste no recôndito íntimo
que é algibeira do trauma,
e esquife do Édipo.

Ali onde vivo e sobrevivo
apareceste.
Eras suor e lágrimas.
Eras filtro da malha leve do suéter.
As tiras de couro aferradas aos pés
longilíneos.
A distância medida em anos-luz
entre lunares que constelam
tuas espáduas.

Apareceste ali onde sobrevivo e resisto,
onde encontro o combustível de
amor e ódio que engendra
minhas batalhas e meus caminhos.
Foste o semi-perfil de criança
num passaporte novo e azul.
Foste a tez onde o arco-íris
não esmoreceu; a voz descontínua
que prolonga em tons altos e vocálicos
o crepúsculo dos verbos.

Quando apareceste ali onde resisto e ressinto,
onde sou gradiente contínuo do azul
ao vermelho,
impuseste a tênue ruptura da verdade
sussurrada.
A ruptura que nos arremessa
ao centro ideal de qualquer coisa
e nos torna potência com o
dom de devir no mais radical dos extremos.

Ali onde rabisco minha escatologia,
apareceste.
Produziste o belo com os
dejetos ocos e solícitos duma
catarse salobra, ingênua e risonha.
Catarse assimilada, quilômetros atrás,
pelo murmúrio do Rio mítico
cuja margem é marrom de Portos
e o leito, coágulo de sangue, madeira
e níquel.

Apareceste onde sou terno e tísico.
Desabaste da estante de Jacarandá qual
brasão federal, qual ídolo laico e burguês.
Teu estrondo em meu íntimo
foi de fechadura antiga, bronze denso
e oxidado. Corredor vazio.

Debruçaste-te pesadamente sobre
o que posso ser
com a naturalidade de quem
apenas reforça o mais belo
dos seus gestos ao advertir
o reflexo redondo da objetiva
fotográfica.
Naturalidade de quem rechaça,
com motricidade fina,
a beleza do espontâneo.