domingo, 16 de maio de 2010

O mito de Dahrmo Madu

-relato fantástico-


Os iroami, nativos da ilha de Pahdrei Majdou, situada na micronésia, acreditam que um amor apenas é efetivo quando permanece rotundamente não correspondido. Sendo assim, duas pessoas podem chegar a amar-se, mas jamais ao mesmo tempo. Na maioria dos casamentos, os cônjuges ou não se amam (o que é absolutamente aceitável), ou se revezam ao longo dos anos no exercício do amar. O vocábulo "dòrd-cohtveló", que designa o sentimento de amar, também se usa para definir a frustração.

É comum, em Pahdrei Majdou, que os filhos afirmem não amar suas mães. Soaria de péssimo gosto sugerir que se nutre amor pela progenitora. Às mães, se lhes reserva o direito e a obrigação de amar sem que seus rebentos ponham em xeque a pureza do que elas sentem. Só se está autorizado a manifestar amor pela mãe depois da morte desta. Anula-se, assim, a possibilidade de concomitância, ficando preservados, em essência, os afetos que regem a unidade e a solidariedade familiar.

Os nativos evocam um mito - o de Dahrmo Madu - para embasar sua crença na impossibilidade do amor recíproco. Lançando mão de relatos coletados por vários investigadores que aportaram na região, é possível recompor o essencial da história.

O demiurgo Dahrmo Madu sonhou com o homem e com a mulher. No sonho de Dahrmo Madu, o homem e a mulher sonharam que deus os estava sonhando. Foi composta, desta forma, a simbiose cósmica que sustenta o mundo e coloca os seres humanos sintonizados com o divino. Em seu sonho, a divindade profetizou: "juntos, o homem e a mulher se amarão, viverão e procriarão". Cumprindo com o primeiro ditame do criador, o homem e a mulher trataram, assiduamente, de construir o amor. Passaram incontáveis crepúsculos e amanheceres manifestando mutuamente e de todas as formas possíveis, a intensidade do que nutriam um com relação ao outro. Eram tão fortes os quereres de ambos, que lhes foi impossível tomar consciência do próprio amor. Não estavam jamais satisfeitos, sentiam-se em dívida permanente com o criador. Não sabiam até que ponto as ordens divinas estavam sendo cumpridas. Preocupado com esta situação, assombrado com a possibilidade de que jamais a humanidade alcançasse certeza de estar amando, o demiurgo sonhou com outra mulher que, por sua vez, sonhou que deus a estava sonhando. Esta mulher recebeu as seguintes ordens: "não deverás corresponder ao amor de outro homem ainda que vivas e procries com ele". Quando aqueles três seres humanos recém criados se encontraram, o homem, cumprindo com os desígnios da divindade, buscou amar a segunda mulher. Não foi nem mininamente correspondido. Percebeu a dimensão do seu sentimento ao defrontá-lo com a inércia completa da nova companheira: estava enamorado. Quanto à primeira mulher, percebendo que o homem havia conseguido amar - amar a outra -, sentiu uma dor violenta, conscientizou-se, imediatamente, do amor. Era já tarde. O primeiro homem casou-se com a segunda mulher e tiveram um filho. Como a criança recém nascida, sonhada pelos seres humanos, não estava incumbida a priori de exercer qualquer sentimento com relação a ninguém, a segunda mulher achou válido amá-la, mas recomendou-lhe que apenas amasse uma pessoa que não pudesse corresponder aos seus afetos. O menino, quando púbere, apaixonou-se pela primeira mulher - que ainda amava o primeiro homem - e com ela se casou sem nunca ter seus quereres retribuídos. A ingratidão foi o preço a ser pago pela humanidade ao receber o dom de amar conscientemente.

Trabalhos recentes sugerem que alguns aspectos da cosmologia de Pahdrei Majdou podem ser identificados por todo o Pacífico e que, em realidade, nesta pequena ilha da micronésia, se verifica uma exacerbação de noções do amor presentes em diversas regiões da Oceania. Estudos mais arrojados e, por isso mesmo, faltos de qualquer credibilidade acadêmica, chegam a propor que os intensos circuitos de trocas que atravessam o Pacífico há milênios tornam difícil determinar a abrangência desta "filosofia" do amor classificada como 'iroami'. Se aceitássemos a falácia dos trabalhos ditos de "vanguarda", acabaríamos por concluir que o ideal de amor "iroami" está universalizado e sofre pequenas oscilações cujo caráter é meramente situacional. Um absurdo. De ser assim, deveríamos interpretar clássicos do romantismo ocidental como "Romeu e Julieta" enquanto ecos de discursos dissidentes e quase blasfêmicos - ainda que altamente persuasivos. Discursos periféricos à uma suposta arte concreta e generalizada do amor entre os homens.

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