
Pepe Mujica (na foto) tinha seu nome confirmado na chapa, pois ganhara as eleições internas celebradas um mês antes. Político cebola, como ele mesmo se definiu certa feita, soube “descascar-se” – quando não foi descascado – de pigmentos do momento e da seita para construir lealdades de amplo espectro das quais extraiu um saldo final positivo: consolidou-se como nome representativo de uma esquerda uruguaia que se considera apta para, novamente, falar em projeto nacional e ambicionar a dianteira das mudanças sociais no largo prazo.
Interessante metáfora a da cebola! Na medida em que se descasca, ela perde volume unitário – leia-se individual –, cabe com facilidade numa cesta cheia. No entanto, ao passo que diminui, a cebola libera de forma mais intensa uma substância característica que, dada a radicalidade da sua natureza de sumo profundo, sensibiliza aqueles rostos mais impávidos. É a cebola como via para a unidade!
Sucessivas vezes, escutando as falas de Mujica e, posteriormente, do seu companheiro de chapa, Astori, senti fortuitos arrepios. Mesmo estando eu relativamente distante de todo o espaço mental concernente às agremiações de esquerda no Uruguai, as intervenções dos dois líderes frenteamplistas me afetaram. Em parte, isso aconteceu porque o trabalho de campo que realizei na cidade de Montevidéu colocou-me em contato com problemas sociais que o programa da esquerda se propõe a interpretar e enfrentar. No Brasil, contudo, eu já havia adquirido outra capacidade típica daqueles que se identificam com forças sociais de esquerda: emocionar-se ao ouvir as máximas políticas que convertem a utopia em instrumento efetivo de intervenção na vida coletiva dos homens.
A esquerda, a direita e as ambigüidades
Após breves diálogos – estes sim possibilitados pela minha condição de “imprensa” – com alguns ministros do atual governo da F.A., nos retiramos desse primeiro contato direto com a mobilização eleitoral dos progressistas orientais. Ficou a impressão de que tudo aquilo – os discursos, as cédulas dos delegados, as palavras de ordem – se tratava de um ritual direcionado à afirmação do patrimônio simbólico da esquerda. Num contexto político como o uruguaio, onde a polarização é constante e a possibilidade de coalizões inter-partidárias reduzida, conformar referenciais estáveis têm grande importância estratégica. Ao passo que no tempo da repressão política, esta tarefa era complicada para a esquerda e razoavelmente fácil para os partidos tradicionais (à época, majoritariamente auto-designados de direita), durante a abertura democrática o quadro inverteu-se. Um desengessamento da esfera pública – ou a desenterdição da ágora – permitiu à esquerda recuperar velhos referentes e fazer repercutir amplamente suas sagas, retomando, assim, compromissos políticos que jaziam numa longa orfandade.
Os movimentos sociais e sindicais, em sua interlocução com a Frente Ampla, garantiram a manutenção e vigência de bandeiras políticas que, com o crescimento eleitoral da esquerda a partir de meados da década de 80, começaram a se fazer mais presentes nas esferas legislativas e executivas. A F.A., graças a sua interface com os movimentos, pôde constituir uma matriz programática mais ou menos refratária às ambigüidades características da retórica em voga nos partidos tradicionais (principalmente o Partido Blanco). Ditas ambigüidades, da mesma forma que os desgastados bordões conservadores embalados ou não pelo estribilho do laissez faire, aparentemente não cativaram o eleitorado. Por outro lado, é cada vez mais difícil sustentar a “dignidade histórica da direita” perante setores sociais munidos de certa consciência crítica e abalados pelos traumas do pós-ditadura e do pós-crise. Tem bastante de paradoxal na situação dos partidos tradicionais no Uruguai. Se a confusão dos propósitos políticos não é bem aceita pela cidadania, tampouco o discurso “durão” de direita goza de muito prestígio no atual cenário político nacional.
Falar de esquerda e direita no Uruguai faz sentido e pode ser muito útil, pelo menos para a esquerda, pois a Frente Ampla, por agora, não se defronta com o mesmo paradoxo que assola blancos e colorados. Daí que tanto militantes como dirigentes frenteamplistas utilizem intensamente esta terminologia, seja para situar-se na acirrada cartografia partidária uruguaia, seja para informar o viés dos seus projetos aos aliados no movimento social e sindical. A Frente Ampla é de esquerda, dizem os frenteamplistas. Sindicalistas e outros militantes sociais confirmam para logo acrescentar: é de esquerda e deve fazer avançar nossas demandas nas esferas institucionais. Significante e significado se fundem nesta concertação. Eis um pilar da atual representatividade da FA.
Experiência histórica e ação no agora
Dias após a plenária frenteamplista, visitamos a sede do Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros (MLN-T) que, na década de 60, realizou uma importante mobilização armada contra o autoritarismo estatal e pelo socialismo. Atualmente, boa parte dos dirigentes históricos do MLN-T encontra-se vinculada à Frente Ampla através do majoritário Movimento de Participação Popular (MPP).
Durante a visita, conhecemos Celia, ex-guerrilheira que nos apresentou o pequeno acervo histórico dos Tupamaros e comentou sua experiência de combatente. Com lágrimas nos olhos e convencida de nossa ingenuidade juvenil, esta velha militante remontou cenas da luta armada e do cárcere. Reviveu as batalhas urbanas em que o tiro era para matar; percorreu antigos calabouços de merda e mortos; revisitou salas de tortura onde luxo era não ser estuprada. Depois se lembrou de quando os Tupamaros julgaram e executaram os professores de tortura que a CIA mandava ao Uruguai para adestrar militares locais na milenar arte de trucidar corpos. Descreveu a falta de escrúpulos das Forças Armadas em sua guerra suja. Valia tudo para fanatizar a tropa contra a ameaça terrorista. Soldados mortos em combate eram cuidadosamente recolhidos, sentados em caminhões com garrafas térmicas e cuias de mate nas mãos para dar a entender que haviam sido executados covardemente pelos ferozes guerrilheiros: artifício barato que alvoroçava milicos e ideologizava a classe média.
Distribuir as riquezas e a terra, estabelecer monopólio público de bens básicos, combater a exclusão independente da forma como se apresente, são demandas que os movimentos sociais uruguaios tratam de sustentar e atualizar. Os antigos membros do MLN-T fazem questão de manter-se identificados com tais aspirações, conferindo-lhes um pedaço de passado que, ao ser validado e positivado diante da sociedade, pode dar mais potência ao discurso das esquerdas. Para Célia, na atual conjuntura política, “las armas cambiaron”, mas os fins seguem os mesmos. A Frente Ampla, aliança madura de forças progressista com trajetórias particulares e ponto de referência para muitas organizações da sociedade, apresenta-se como espaço criativo (certamente não o único, mas possivelmente o mais abarcador) de invenção e, por isso mesmo, realização, das experiências de esquerda no tempo histórico. Só no tempo histórico gestas singulares podem encadear-se para tomar a forma dum processo emancipatório que, uma vez concebido, torna-se capaz de preservar a coerência dos propósitos de uma força política.
Os Tupamaros, autorizados a reencontrar-se de forma legítima com sua experiência passada e habilitados a disputar os sentidos possíveis da guerra que declararam ao Estado (“o habrá Patria para todos o no habrá Patria para nadie”), têm competência para jogar importante papel num esforço coletivo de “contar e recontar a esquerda”. Exercício este que tende a permitir a concatenação das temporalidades de diversos grupos, garantindo, assim, o encontro de subjetividades necessário ao estabelecimento de um campo semântico estável para o desenvolvimento dos projetos das esquerdas uruguaias.
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