terça-feira, 18 de agosto de 2009

Percepções sobre a esquerda oriental (ou "no Sul ainda existe esquerda e direita II")

Bastou assentir com a cabeça quando nos perguntaram se éramos da imprensa. Ato seguido, alojamo-nos facilmente em área reservada para jornalistas no plenário da Frente Ampla (Encuentro Progresista – Frente Amplio – Nueva Mayoría, maior partido de esquerda em atividade no Uruguai) organizado em Montevidéu. Em nenhum momento se fez patente aquele típico afã por inspecionar, exigir credenciais, apartar, diferenciar e seccionar, que marca os atos políticos dos inchados partidos brasileiros. Concorrido mesmo era estar na platéia, ter em mãos as cédulas que ratificam a democracia partidária. Naquela manhã fria de 11 de julho de 2009, os delegados frenteamplistas oficializariam a fórmula do seu partido para as eleições presidenciais uruguaias deste ano.

Pepe Mujica (na foto) tinha seu nome confirmado na chapa, pois ganhara as eleições internas celebradas um mês antes. Político cebola, como ele mesmo se definiu certa feita, soube “descascar-se” – quando não foi descascado – de pigmentos do momento e da seita para construir lealdades de amplo espectro das quais extraiu um saldo final positivo: consolidou-se como nome representativo de uma esquerda uruguaia que se considera apta para, novamente, falar em projeto nacional e ambicionar a dianteira das mudanças sociais no largo prazo.

Interessante metáfora a da cebola! Na medida em que se descasca, ela perde volume unitário – leia-se individual –, cabe com facilidade numa cesta cheia. No entanto, ao passo que diminui, a cebola libera de forma mais intensa uma substância característica que, dada a radicalidade da sua natureza de sumo profundo, sensibiliza aqueles rostos mais impávidos. É a cebola como via para a unidade!

Sucessivas vezes, escutando as falas de Mujica e, posteriormente, do seu companheiro de chapa, Astori, senti fortuitos arrepios. Mesmo estando eu relativamente distante de todo o espaço mental concernente às agremiações de esquerda no Uruguai, as intervenções dos dois líderes frenteamplistas me afetaram. Em parte, isso aconteceu porque o trabalho de campo que realizei na cidade de Montevidéu colocou-me em contato com problemas sociais que o programa da esquerda se propõe a interpretar e enfrentar. No Brasil, contudo, eu já havia adquirido outra capacidade típica daqueles que se identificam com forças sociais de esquerda: emocionar-se ao ouvir as máximas políticas que convertem a utopia em instrumento efetivo de intervenção na vida coletiva dos homens.

A esquerda, a direita e as ambigüidades

Após breves diálogos – estes sim possibilitados pela minha condição de “imprensa” – com alguns ministros do atual governo da F.A., nos retiramos desse primeiro contato direto com a mobilização eleitoral dos progressistas orientais. Ficou a impressão de que tudo aquilo – os discursos, as cédulas dos delegados, as palavras de ordem – se tratava de um ritual direcionado à afirmação do patrimônio simbólico da esquerda. Num contexto político como o uruguaio, onde a polarização é constante e a possibilidade de coalizões inter-partidárias reduzida, conformar referenciais estáveis têm grande importância estratégica. Ao passo que no tempo da repressão política, esta tarefa era complicada para a esquerda e razoavelmente fácil para os partidos tradicionais (à época, majoritariamente auto-designados de direita), durante a abertura democrática o quadro inverteu-se. Um desengessamento da esfera pública – ou a desenterdição da ágora – permitiu à esquerda recuperar velhos referentes e fazer repercutir amplamente suas sagas, retomando, assim, compromissos políticos que jaziam numa longa orfandade.

Os movimentos sociais e sindicais, em sua interlocução com a Frente Ampla, garantiram a manutenção e vigência de bandeiras políticas que, com o crescimento eleitoral da esquerda a partir de meados da década de 80, começaram a se fazer mais presentes nas esferas legislativas e executivas. A F.A., graças a sua interface com os movimentos, pôde constituir uma matriz programática mais ou menos refratária às ambigüidades características da retórica em voga nos partidos tradicionais (principalmente o Partido Blanco). Ditas ambigüidades, da mesma forma que os desgastados bordões conservadores embalados ou não pelo estribilho do laissez faire, aparentemente não cativaram o eleitorado. Por outro lado, é cada vez mais difícil sustentar a “dignidade histórica da direita” perante setores sociais munidos de certa consciência crítica e abalados pelos traumas do pós-ditadura e do pós-crise. Tem bastante de paradoxal na situação dos partidos tradicionais no Uruguai. Se a confusão dos propósitos políticos não é bem aceita pela cidadania, tampouco o discurso “durão” de direita goza de muito prestígio no atual cenário político nacional.

Falar de esquerda e direita no Uruguai faz sentido e pode ser muito útil, pelo menos para a esquerda, pois a Frente Ampla, por agora, não se defronta com o mesmo paradoxo que assola blancos e colorados. Daí que tanto militantes como dirigentes frenteamplistas utilizem intensamente esta terminologia, seja para situar-se na acirrada cartografia partidária uruguaia, seja para informar o viés dos seus projetos aos aliados no movimento social e sindical. A Frente Ampla é de esquerda, dizem os frenteamplistas. Sindicalistas e outros militantes sociais confirmam para logo acrescentar: é de esquerda e deve fazer avançar nossas demandas nas esferas institucionais. Significante e significado se fundem nesta concertação. Eis um pilar da atual representatividade da FA.

Experiência histórica e ação no agora

Dias após a plenária frenteamplista, visitamos a sede do Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros (MLN-T) que, na década de 60, realizou uma importante mobilização armada contra o autoritarismo estatal e pelo socialismo. Atualmente, boa parte dos dirigentes históricos do MLN-T encontra-se vinculada à Frente Ampla através do majoritário Movimento de Participação Popular (MPP).

Durante a visita, conhecemos Celia, ex-guerrilheira que nos apresentou o pequeno acervo histórico dos Tupamaros e comentou sua experiência de combatente. Com lágrimas nos olhos e convencida de nossa ingenuidade juvenil, esta velha militante remontou cenas da luta armada e do cárcere. Reviveu as batalhas urbanas em que o tiro era para matar; percorreu antigos calabouços de merda e mortos; revisitou salas de tortura onde luxo era não ser estuprada. Depois se lembrou de quando os Tupamaros julgaram e executaram os professores de tortura que a CIA mandava ao Uruguai para adestrar militares locais na milenar arte de trucidar corpos. Descreveu a falta de escrúpulos das Forças Armadas em sua guerra suja. Valia tudo para fanatizar a tropa contra a ameaça terrorista. Soldados mortos em combate eram cuidadosamente recolhidos, sentados em caminhões com garrafas térmicas e cuias de mate nas mãos para dar a entender que haviam sido executados covardemente pelos ferozes guerrilheiros: artifício barato que alvoroçava milicos e ideologizava a classe média.

Distribuir as riquezas e a terra, estabelecer monopólio público de bens básicos, combater a exclusão independente da forma como se apresente, são demandas que os movimentos sociais uruguaios tratam de sustentar e atualizar. Os antigos membros do MLN-T fazem questão de manter-se identificados com tais aspirações, conferindo-lhes um pedaço de passado que, ao ser validado e positivado diante da sociedade, pode dar mais potência ao discurso das esquerdas. Para Célia, na atual conjuntura política, “las armas cambiaron”, mas os fins seguem os mesmos. A Frente Ampla, aliança madura de forças progressista com trajetórias particulares e ponto de referência para muitas organizações da sociedade, apresenta-se como espaço criativo (certamente não o único, mas possivelmente o mais abarcador) de invenção e, por isso mesmo, realização, das experiências de esquerda no tempo histórico. Só no tempo histórico gestas singulares podem encadear-se para tomar a forma dum processo emancipatório que, uma vez concebido, torna-se capaz de preservar a coerência dos propósitos de uma força política.

Os Tupamaros, autorizados a reencontrar-se de forma legítima com sua experiência passada e habilitados a disputar os sentidos possíveis da guerra que declararam ao Estado (“o habrá Patria para todos o no habrá Patria para nadie”), têm competência para jogar importante papel num esforço coletivo de “contar e recontar a esquerda”. Exercício este que tende a permitir a concatenação das temporalidades de diversos grupos, garantindo, assim, o encontro de subjetividades necessário ao estabelecimento de um campo semântico estável para o desenvolvimento dos projetos das esquerdas uruguaias.

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