terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Milena

As prosas fantásticas se insinuam, quase todas, de maneira semelhante. O autor dá início ao texto relatando que determinada história de aparência verossímil lhe foi contada por alguém, num momento ao mesmo tempo específico e difuso. Este breve relato começa exatamente assim, mas asseguro que em muito seu conteúdo dista da ficção.

O fato é que numa noite de profundo azul e distante firmamento das que caracterizam o mês de agosto no Atlântico Sul, tive a oportunidade de conhecer e escutar dona Isabel. Esta mulher habitava, desde os funerais do seu marido, um quartinho mofado localizado aos fundos do edifício que me serve como retiro invernal na costa riograndense. Encarregada de tomar conta do prédio em baixa temporada, transpunha raramente o perímetro do imóvel. Em muitas ocasiões, acometido pela sensação por vezes incômoda de estar absolutamente só no apartamento vazio, reconfortei-me lembrando que, lá embaixo, encontrava-se Dona Isabel, sua revistinha de palavras cruzadas, sua televisão mal sintonizada, sua caturrita engaiolada. Era como ter uma espécie de companhia ausente. Contudo, naquela derradeira noite de inverno, quando sequer me sentia sozinho, a franzina Isabel abandonou seu habitual ostracismo para bater em minha porta.

Atendi perplexo a inusitada visitante. Ela pediu desculpas primeiro pelo avançado da hora e segundo, por não recordar meu nome. Me chamo Henrique - disse - e quanto à hora, não há problema, durmo tarde. Isabel silenciou, olhou artificialmente para o chão. Não tive outra opção que perguntar se desejava entrar. Acomodei-a na sala e, enquanto preparava o café, inqueri se algo havia acontecido. Quando Milena me visita, não consigo pregar os olhos - respondeu. Ainda perplexo, com duas xícaras na mão, sentei-me em uma cadeira diante de Isabel e, franzindo a sobrancelha, disse: Milena? Compartilho com o leitor a longa e desconcertante resposta oferecida pela obscura senhora:

"o moço não parece ser daqueles que muito se prende ao que passa mais além da janela do apartamento. Desculpe a petulância, mas é o que me parece e, particularmente, não vejo mal nenhum nisso. Olhando as prateleiras da sua sala, todos os livros que mantem aqui, penso que se diverte entre as letras, como me divirto eu com as revistinhas de palavras cruzadas. Claro, tampouco saio muito do prédio, estou envelhecida, mas nunca me senti enclausurda. Ainda que este corpo não me permita qualquer incursão mais demorada pelo povoado, fico atenta ao céu, à natureza, ao vento que sopra e me traz ares sempre renovados, talvez provindos de outros vilarejos e cidades. Traz, também, o nevoeiro e Milena. Certamente o moço não reparou que quando a noite caiu completamente, trouxe consigo uma aragenzinha gélida e aquele nevoeiro de agosto. Maldito e previsível nevoeiro. Digo que não reparou porque a janela deste apartamento esteve fechada durante toda a tarde. Para responder sua pergunta, para deixar claro quem é Milena, preciso comentar um pouco sobre essa neblina pesada e escura que hoje cobriu a praia. Trata-se de um fenômeno raro no inverno. Costuma ocorrer com mais intensidade em pleno verão, mas não é a mesma coisa. O nevoeiro do inverno chega cedo e se dissipa rápido. O do verão vai se espraiando madrugada adentro e some aos poucos, suavemente, arrefecendo por completo sob a primeira luz da manhã. Conheço bem o clima do litoral porque, quando faleceu meu marido, preenchi os dias de luto com a exaustiva observação do tempo. Sentada num pátio qualquer, descobri cada uma das sutis mudanças atmosféricas que transformam dia em noite e ativam o gradiente das estações. Sei exatamente quando a brisa de inverno começa, ardilosamente, a flertar com a primavera num idílio inexorável que as últimas geadas não chegam a acobertar. Sou capaz que prever, inclusive, o último gelo matutino antes que este se acumule sobre o pasto. O mesmo ocorre com o nevoeiro que hoje apagou a orla, os postes, a estrada. Três ou quadro dias antes da sua vinda, posso percebê-lo pelas sutis reverberações que provoca no vento indiscreto. Fico sobressaltada porque sempre, junto com o nevoeiro, vem Milena. Antes eu não sabia escutá-la. Agora que suas palavras soam claras nos meus ouvidos e me restam parcos meses de vida, preciso compartilhar minha sórdida verdade. O faço por mim e o faço por Milena. Desculpe o egoísmo, mas não tenho outra opção, o ímpeto que me levou a procurá-lo nesta madrugada, dificilmente irrompa em outra oportunidade. Sou extremamente reservada, tenho plena consciência do quão raros são os momentos de abertura e franqueza que me permito. Ademais, Milena exige tudo isto. Vou direto ao ponto, vejo enfado no seu olhar. O nevoeiro se ergue a duas milhas da costa, traz consigo mormaço sulfuroso do oceano matizado pelo cheiro das algas. Mas este nevoeiro é também, acima de tudo, um sentimento, porque conduz incrustado em seu âmago toda a resignação e espanto das almas dos afogados. Quando percebi o real caráter da intempérie, compreendi por que ela é capaz de aninhar no mais profundo de nosso ser, de nosso íntimo. Desde então comecei a dar ouvidos aos pregões de Milena, que antes pairavam desapercebidos. Não se sinta lisonjado por ser caudatário da minha história. Outros já tiveram a oportunidade de conhecê-la, mas me rotularam como louca. O que o torna diferente dos demais é não pensar que me falta lucidez. Por saber o quanto me levaria a sério, hesitei bastante em procurá-lo. Agora, entretanto, dividimos um dom ou, talvez, uma condenação. Estou certa de que atentará para a próxima neblina e algo lhe fará lembrar este nosso encontro. Será no ano que vem, não mais habitarei a soturna peça do andar térreo. Não mais serei a invisível companhia calada cuja presença acalma, vez que outra, suas solidões noturnas. Entretanto, o moço terá, caso queira, os pregões de Milena, seu denso e sufocante alento no cerne daqueles instantes que, por serem sombrios, parecem os mais desoladores. Quiçá aprenda, então, a apreciar o valor de fazer-se presente para outrem, rompendo, assim, a falsa aura de impenetrabilidade que nossa própria solidão aparentemente ostenta. Por estarmos sós, não precisamos impor solidão aos demais. Isso ensinou Milena, com sua voz de morte que a cada ano deixou-me mais absorta. Atualmente, quando falo com outras pessoas, só consigo pensar nela, arremessando sobre os poucos que me rodeiam o fel das elocubrações alentadas pelo tenebroso nevoeiro.".

Depois de terminar seu monólogo, que repercutiu como litania triste e monocorde nas paredes da sala, dona Isabel levantou-se com ares de esgotamento. Supus que ela desejava ir embora. Abri a porta e dei boa noite. A senhora foi caminhando pelo corredor escuro e desceu, lentamente, as escadarias. Tive um súbito arrepio que enrijeceu minhas costas e se espalhou ao longo dos meus braços. Preparei mais café, liguei o som, fechei as persianas e tive a certeza de que minha tranqüila solidão havia sido usurpada vilmente. Nunca mais regressei ao apartamento no inverno, pois temia que alguém pudesse ameaçar minha auto-imposta desolação, convertendo-a em monstruosidade intransponível, indomável. Certamente esse alguém não seria dona Isabel, que veio a falecer de agudo câncer abdominal meses depois da inesperada visita noturna que me fez. Temo a companhia de Milena, temo a mais claustrofóbica das solidões.
Alex - Janeiro/10

Um comentário:

Juliana Mesomo disse...
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