domingo, 26 de fevereiro de 2012

Dos "lattes points" a uma dissidência possível




Têm se tornado cada vez mais frequentes as críticas ao atual modelo de funcionamento do sistema de pós-graduação no Brasil, principalmente no que diz respeito à sua subordinação à política de Ciência e Tecnologia e à sua dinâmica fortemente produtivista. Professores se queixam de que precisam realizar esforços hercúleos para cumprir com as obrigações profissionais sem deixar de responder aos os padrões gerais de avaliação da produtividade docente impostos pela CAPES (em programas nota 6 ou 7, espera-se que cada professor publique, em média, 1,5 artigos por ano em revistas internacionais conceito A). Já os estudantes, alertam para a defasagem entre a expansão de vagas na pós-graduação e o número de bolsas de estudo disponíveis. Eles manifestam, também, uma inevitável frustração diante da estrutura acadêmica que, movida por jogos de prestígio e poder, imerge em transe profundo, alheio a qualquer preocupação com a importância social do conhecimento científico.

Nas “hard sciences”, a palavra de ordem é "inovação" e os critérios para avaliação do mérito encontram-se suscetíveis a uma euforia tecnológica que suspende quaisquer indagações sobre a possibilidade de assimilação dos progressos científicos a planos globais de desenvolvimento societário. Nas ciências humanas e sociais, falar em "inovação", do ponto de vista do conteúdo da produção, não faz muito sentido. Nem por isso, o slogan perde seu poder de sedução. Se a ideia de deixar um pouco de lado o confortável e profícuo diálogo com os "clássicos" para aventurar-se nas águas dinâmicas do mercado e das consultorias ainda provoca certa restrição entre os cientistas sociais, a proposta de "inovar" nos moldes de apresentação das dissertações e teses soa como o canto das sereias. Em vez de longas monografias, por que não apostar em exposições mais versáteis, algo no estilo de um artigo compatível com as normas internacionais de publicação? Realmente o que parece dinamizar as características da produção de conhecimento é a própria vontade de produzir racionalizada e eficientemente. Grosso modo: produção pela produção. Mais grosso modo ainda, P-LP-P, ou seja, produção–"lattes points" (para usar a inspirada expressão formulada por uma colega)–produção. Eis o círculo virtuoso (ou seria círculo vicioso?) do conhecimento científico.

Dos comentários feitos até aqui, não é difícil concluir que o impulso produtivista, catalizado pelas exortações à inovação e sustentado pelas tecnologias vigentes de avaliação, é fonte principal de dilemas éticos e políticos que se alojam no cerne dos debates ocorridos dentro das instituições brasileiras destinadas ao ensino superior. Nesta breve crônica, me restringirei a tecer alguns comentários a respeito do impacto do produtivismo num campo disciplinar como o da antropologia, com o qual estou mais familiarizado em decorrência da minha condição de estudante de mestrado nessa área.

Em primeiro lugar, proponho uma brevíssima digressão que nos levará à década de 1970, quando a pós-graduação brasileira conheceu um dos mais importantes e definitivos impulsos governamentais para o seu desenvolvimento. Corria a ditadura militar no país. Em todas as grandes universidades públicas, irrompiam processos de expulsão e aposentadoria compulsória de um número importante de professores, oriundos das mais diversas áreas do saber. Em meados da década anterior, intelectuais destacados no cenário científico nacional já haviam deixado o país rumo ao exílio político. Alguns foram acolhidos em universidades estrangeiras, outros avançaram num necessário engajamento social. O caso emblemático deste último grupo foi o antropólogo Darcy Ribeiro, que depois de 1964, tornou-se conselheiro político de Salvador Allende no Chile e, mais tarde, deu aulas na Universidad de la República, em Montevidéu, onde escreveu o livro A Universidade Latino-americana. Após experienciar três golpes de Estado, Darcy regressou ao Brasil. Aqui, ele encontrou um sistema de ensino completamente reformulado. Reagiu mal às mudanças, soltou gritos iracundos que hoje ressoam no anedotário da antropologia brasileira. Darcy Ribeiro não suportou a tremenda complexificação do horizonte empírico da antropologia, espraiado muito além do indigenismo, matizado por estudos sobre urbanização, identidades emergentes e outros fenômenos associados não só ao radical processo de industrialização, mas também ao surgimento de uma arena política marcada por novos léxicos jurídicos e outros sujeitos de direito, outros "outros". Talvez o descontentamento de Darcy dissesse muito sobre a reorganização das relações de poder e do sistema de prestígio institucional na antropologia brasileira, mas não se resumia apenas a isso.

A reforma universitária da ditadura militar brasileira, na década de setenta, caiu em mãos conservadoras – como era de se esperar – e perdeu em muito seu potencial renovador (se é que tinha algum). A pós-graduação investiu um caráter elitista e ficou submetida à tutela externa. Abriu-se uma brecha decisiva entre os cursos de graduação e os níveis mais avançados de formação acadêmica. De um lado do abismo, os cursos superiores, destinados à formação cultural associada com capacitação técnica. Do outro lado, a pós-graduação, entendida como instância privilegiada da pesquisa e da legítima produção do conhecimento. O "benefício colateral" da reforma implementada pela ditadura foi a elaboração de um sistema mais ou menos coerente de instituições e agências de financiamento que garantiram a sustentabilidade da pós-graduação brasileira. Isto vem sendo chamado por certos acadêmicos de "profissionalização da atividade intelectual". Darcy Ribeiro retornou ao Brasil em 1976, quando o operário Manuel Filho foi "suicidado" pelo DOI CODI paulista. Nesse famigerado ano, a CAPES dava a conhecer seu flamante Sistema de Avaliação da Pós Graduação. Estavam criados os dispositivos governamentais que sintonizariam a pós-graduação com o processo de expansão da base material necessária à produção capitalista.

É claro que, em meio a toda essa reestruturação do Ensino Superior, o papel destinado às ciências humanas não foi exatamente importante. A noção de projeto nacional de desenvolvimento propalada pelo regime autoritário restringia-se a um enfoque tecnicista, onde importava muito pouco conhecer, sistematicamente, os impactos sócio-culturais da transformação econômica no presente do país do futuro. Mas nem tudo era um vale de lágrimas. Desenvolta das “amarras” do marxismo e do funcionalismo, a ciência social brasileira podia lançar-se a um contente carnaval de criatividade e experimentação. E se os milicos eram heróis, os antropólogos, assaz conhecedores da ciência dos arrabaldes, fariam as vezes de malandros. Esta lógica, em que pese sua aparente ingenuidade, produziu situações interessantes que precisam ser reconhecidas e valorizadas. O espaço da pós-graduação em antropologia privilegiou o incremento da produção científica e mesmo o aparecimento de uma tendência crítica que, distante de ser hegemônica, permitiu a realização de pesquisas consistentes cujo valor foi e é inestimável para a construção e aprofundamento da democracia no Brasil.

Mas algo parece ter ficado pelo caminho. Algo muito importante. Se bem me lembro -- e este relato nem de longe pretende ser literal --, Otávio Velho, em uma conferência dada em 2009 no Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da UFRGS, lamentava que toda a mobilização em prol da profissionalização da disciplina tivesse redundado numa aparelhagem acadêmica muito pouco dada à interdisciplinaridade e ao diálogo com outros setores da sociedade. Uma aparelhagem acadêmica endogâmica, às voltas com o paradigma produtivista, queixosa do pouco valor que o governo lhe reserva e, aventuro-me a dizer, confusa a respeito do seu real potencial crítico. Sem dúvidas aquela fala de Otávio Velho, em 2009, estava influenciada por sua recente experiência no Fórum “Ciências Humanas e Políticas Científicas, onde o presidente da CAPES, Jorge Guimarães, desafiou as associações científicas de humanas a trabalharem em um projeto para financiar pesquisas dispostas a pensar o Brasil na atualidade. Mas e agora? Já não havíamos emitido o atestado de óbito das grandes narrativas, dos amplos estudos exploratórios? O que fazer com a singularidade disciplinar construída a duras penas durante a ditadura militar?

Não raro, quando queremos justificar o porquê de utilizar o método etnográfico em determinado contexto e dispomos de poucas linhas para fazê-lo, usamos alguma fórmula do tipo: "perco em abrangência, mas ganho em profundidade". Reaproprio-me desta útil construção retórica para elaborar uma proposição em resposta à última questão do parágrafo anterior: utilizando a licença poética que minha condição de estudante autoriza, ciente de que perco em audiência, mas ganho em ousadia, sugiro que se trata, agora, de rechaçar qualquer disciplinarismo. A profissionalização dos antropólogos no seio do sistema universitário brasileiro teve um custo alto, capaz mesmo de colocar em xeque o êxito desta suposta façanha. Em primeiro lugar, a quase totalidade da produção de conhecimento promovida pela antropologia brasileira encontra-se, hoje, submetida a um estandarte geral de avaliação caracterizado pela (in)determinação quantitativa de toda a qualidade (ecos de 1976). Em segundo lugar, a canalização produtivista das dinâmicas disciplinares debilitou o único instrumento que permitiria à antropologia (ou aos antropólogos) enunciar alguma crítica crível das dinâmicas sociais atuais, a saber: a declarada aliança política no contexto da interlocução etnográfica. A este respeito, o antropólogo colombiano Eduardo Restrepo tece um agudo comentário que, se bem diz respeito à realidade do seu país, aplica-se com exatidão na conjuntura brasileira: "as antropologias hegemônicas confluem em uma postura cínica frente às tensões sociais do país. Suas preocupações radicam mais em emular as academias metropolitanas (principalmente a estadunidense) com suas modalidades produtivistas (agora enroupadas em noções de qualidade e internacionalização) onde as tensões sociais, no melhor dos casos, podem aparecer como objeto de um "paper" (assim mesmo, em inglês)" (ver entrevista com Eduardo Restrepo no boletim "A Tinta Crítica":http://antropologiacritica.wordpress.com/tinta-critica/). Por último, é impossível não reconhecer que a conversão da antropologia em disciplina acadêmica postergou qualquer expectativa de democratização das relações sociais ativadas na produção do conhecimento, deixando intactas certas genealogias institucionais e preservando uma atmosfera elitista em diversos programas de pós-graduação no país.

A antropologia, submetida ao paradigma do produtivismo, socializa os prejuízos em seu respectivo campo ao passo que mantém concentrados os benefícios associados a atividade acadêmica. Os docentes -- pressionados em seu trabalho pelo ônus da lógica da produtividade --, permanecem distanciados de qualquer projeto social mais amplo, ou daquilo que não diz respeito às suas preocupações imediatas (de produção). Mas eles recebem algum tipo de recompensa por isso, seja na forma de prestígio, reconhecimento ou bônus financeiros. Já as contrapartidas das políticas de educação superior que condicionam a produção docente, são a precarização do trabalho e a debilitação do processo educacional de maneira geral. Mas os prejuízos não param por aí. Os estudantes de antropologia, cujo número vem aumentando consideravelmente, não vislumbram nenhuma política de bolsas verdadeiramente generosa (na medida das grandes ambições que o discurso oficial atrela à pesquisa de pós-graduação). "Sem tesão não há produção", diziam os cartazes dos estudantes de mestrado em antropologia que paralisaram suas atividades durante uma semana, no ano de 2011, em Porto Alegre (movimento “paramos para pensar”).

Dito isto, fica difícil encontrar formas de atender ao chamado do presidente da CAPES a "pensar o Brasil na atualidade". A produção de um saber potente, crítico – e, por isso mesmo, socialmente útil – a partir da antropologia exige importantes reordenamentos, não apenas na constituição da disciplina, mas também nos parâmetros utilizados para avaliar seu desempenho. Não acredito que estes reordenamentos possam acontecer por si mesmos, assim como tampouco creio que todos os antropólogos estejam interessados em levá-los a cabo. Isto não muda o fato de que eles são fundamentais, caso os profissionais e estudantes que, hoje, se aventuram na área da antropologia pretendam criar as condições propícias para pensar com clareza o "Brasil na atualidade" (o Brasil na América-latina, no sistema-mundo; o Brasil e suas violências estruturais, desigualdades novas e velhas, o Brasil e suas epistemologias do Sul, etc., etc.).

Talvez a prática dissidente seja um caminho para explorar outras lealdades e alianças que conduzam a vias alternativas de legitimação da produção intelectual. Vias de legitimação onde interlocutores não-acadêmicos, antropólogos e outros cientistas sociais reforcem projetos políticos mútuos na esteira de uma práxis transformadora e propositiva que, sem negar a Universidade e a pós-graduação, construa espaços profissionais dignos e reconhecidos, mais além do aparelho de captura disciplinarizante submetido ao paradigma produtivista.


Alex Martins Moraes (mestrando PPGAS/UFRGS)

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