Alex Martins Moraes
A Defesa da Alegria e o debate
necessário
Estive presente na Defesa Pública
da Alegria, dia 4 de outubro de 2012 (quinta-feira). Foi um dos eventos mais cativantes de que
participei nos últimos tempos. Durante boa parte da noite, uma composição
heterogênea de movimentos culturais, sociais, grupos musicais e de teatro fez
emergir um belo espaço de interação criativa que me permitiu imaginar a cidade
de Porto Alegre para além do estado de sítio neoliberal implantado pela atual
administração municipal. Só por esta razão, por ter sido um movimento amplo e
contagiante, que se dispôs a viver “uma outra cidade possível” em pleno Centro privatizado da capital gaúcha, a
Defesa da Alegria já mereceria o apoio firme e convicto de todos os setores
democráticos.
Por volta das 23h, o movimento
que havia começado na Praça Montevidéu se estendeu ao largo Glênio Peres,
abraçando e fazendo tombar o boneco inflável que representava o mascote da Copa
do Mundo. Em alguns minutos, o símbolo de uma alegria plástica e excludente converteu-se
na imagem potente que afrontou o pensamento único e o falso consenso produzido em
torno das obras da Copa do Mundo. A “queda” do tatu bola foi um ato legítimo de
afirmação da importância do espaço público, de denúncia das arbitrariedades e exclusões inerentes às parcerias público-privadas. O esvaziamento do tatu obrigou a aparelhagem repressiva da Prefeitura de Porto Alegre e do
Governo do Estado a escancarar, pornograficamente, no Centro da capital, um
ânimo autoritário que pulsava sorrateiro, há meses, em diversos bairros
populares. Lá, bem longe dos holofotes e dos microfones da mídia gorda, centenas de famílias vêm sofrendo todo o tipo de pressão econômica e
violência simbólica para deixarem suas casas em favor do “progresso” urbano representado
pelas obras da Copa.
A Defesa da Alegria inaugurou, no
dia 4 de outubro, um novo debate, ou melhor, tornou-o público, contribuiu para que
se generalizasse. Já não é moralmente possível exaltar o desenvolvimento
econômico trazido pela Copa do Mundo sem se perguntar por seu lado escuro e
suprimido; pelas praças higienizadas – onde não há mais feiras ou eventos;
pelas famílias mais pobres que são despejadas ou expulsas para bairros
distantes em decorrência da especulação imobiliária e do baixíssimo bônus
moradia; pela vida noturna desertificada, que só faz aumentar a sensação de
insegurança daqueles que se “atrevem” a utilizar a cidade, suas ruas e
avenidas.
Quem merece sofrer?
No dia 5 de outubro (sexta-feira),
as notícias da manifestação realizada na Praça Montevidéu repercutiram nas
redes sociais e em diversos órgãos de imprensa. Fiquei impressionado ao
constatar que, principalmente na televisão – reduto monopolizado por grandes
grupos econômicos que vivem, desde a ditadura militar, uma relação promíscua
com o Estado –, ecoaram com força, sem nenhum contraponto, as vozes do
autoritarismo e da morte. Realmente os grandes meios de comunicação consistem,
hoje, numa ameaça concreta às grandes ambições democráticas da Constituição
Cidadã de 1988. A mega-imprensa faz precipitar sobre a sociedade brasileira uma
cultura de debate absolutamente autoritária, que, sob o pretexto de enunciar a “sensatez”
e os “fatos”, faz apologia ao crime e exorta as polícias a estabelecerem “zonas
de exceção” onde é permitido espancar, humilhar, trucidar.
“Zona de exceção”, foi nisso que
se transformou o Largo Glênio Peres depois da queda do mascote da Copa. Eu
nunca havia presenciado tamanha ignomínia. Enquanto tentava fotografar dois
policiais que agrediam brutalmente um jovem, sem que este tivesse qualquer
possibilidade de defender-se, recebi pancadas na cabeça e nas mãos e tive minha
câmera quebrada. Isso aconteceu com outras tantas pessoas ao longo dos quinze
minutos em que a Brigada Militar e a Guarda Municipal, completamente descontroladas,
golpeavam cabeças – esta arma perigosa – e corpos, pontilhando as ruas centrais
de poças de sangue. Mas não só na violência física se ampara a repressão. Não
foram poucas as situações em que, ao espancarem mulheres, os policiais
destilavam um profundo ódio de gênero, chamando-as de “vagabundas” e dizendo
que elas fossem “lavar uma louça” e “procurar seus machos”.
E o que fazia Lasier Martins – esta
carta marcada do reacionarismo gaúcho – em seu exercício diário de escatologia
verbal no Jornal do Almoço? Referendava a ação da polícia, desqualificava o
movimento de defesa da alegria e classificava como “terrorista” o protesto
multitudinário da noite anterior. O que significa afirmar que alguém é “terrorista”?
Ora, significa dizer que esta pessoa está fora de qualquer jurisdição, não goza
de nenhum direito ou garantia, é uma vida nua a mercê de todo o tipo de acosso
mortífero. A alquimia que transforma qualquer oposição em terrorismo é uma
prática sempre a disposição dos governos autoritários e das máquinas de guerra
imperialistas. Geralmente, o vocábulo “terrorista” vem acompanhado de outro
adjetivo igualmente útil àquelas estratégias interessadas em impor o pensamento
único: “fanático”. Quando há fanatismo, não há razão, não existe reflexividade,
apenas irracionalidade. Não precisa, portanto, haver diálogo. Qualquer
dissidência passa a ser animalizada, desumanizada, a tal ponto que se torna “razoável”
justificar sua aniquilação e sofrimento em nome da defesa de um brinquedo
inflável instalado no meio da via pública. Este é o tipo de operação retórica
alentada pelos mesmos sujeitos que, amanhã ou depois, estarão afirmando – com o
beneplácito da mídia gorda – seu eterno compromisso com a liberdade de
expressão, os direitos humanos e as garantias individuais.
A Defesa Pública da Alegria foi e é uma contribuição necessária para a prática social pluralista. Sua emergência nas ruas da capital convida @s portoalegrenses a refletirem criticamente sobre os
processos sociais que, hoje, convertem nossa cidade num espaço de
conflitos, assimetrias e desigualdade. Mais além disso, o movimento da Praça
Montevidéu consagrou táticas eficazes de luta social, as quais só tendem a enriquecer repertório estratégico dos processos coletivos de resistência que vicejam na cidade. A este respeito, era quase comovedor ler as queixas
que o comandante da Bigada Militar fez à reportagem do Sul 21. Nelas, ele lamentava o absurdo de um movimento que se organiza através de redes dispersas –
algumas virtuais –, tornando impossível o trabalho de identificação e coerção
dos “envolvidos”. Depois desta melancólica constatação, vinha o aviso: da
próxima vez a repressão será ainda mais dura. Ora, se até mesmo um policial
reconhece que pode haver próxima vez é porque a defesa da alegria não foi uma
ação isolada. Pelo contrário, consistiu na materializaçao de insatisfações diversas e generalizadas que seguem
vigentes e continuarão repercutindo na esfera pública. Definitivamente, o
frágil consenso acrítico performatizado pela prefeitura e pelos meios de
comunicação hegemônicos em torno da Copa do Mundo foi “esvaziado”. Com a ágora
reaberta – de direito e de fato –, o debate está lançado.
Algumas fotos que realizei no local até ter minha câmera destruída pela Brigada Militar:
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