terça-feira, 20 de janeiro de 2009

It’s hard to be down when you’re up

Ergela é um porto que não possui altos edifícios. Não digo que se trata de uma cidade de baixas construções, entretanto, seu pouco sinuoso relevo de concreto tem ares quase monótonos. Ergela, de baixo, do pé dos edifícios, é pouco instigante. A decrepitude do Centro remete a uma realidade que compartilham todas as cidades do Novo Mundo: elas envelheceram de repente, sem poder degustar com calma a passagem dos anos e dos séculos. Ver Ergela do lago marrom e denso que a abraça parece-me uma experiência clichê. Nas poucas vezes em que tive a oportunidade de observar a cidade desde algum ponto no lago, fosse um barco, fosse uma ilha, não saboreei surpresa especial. Pelo contrário, me entristeci. São de fato patéticas as imagens modificadas, fraudadas que, sob a forma de cartões postais, se vendem aos turistas incautos. Há uma contradição insolúvel entre essa Ergela que se representa para os turistas e aquela que se desdobra pesada através da bruma fecal que emana do lago Abiaug.

Há muito tempo me impus a tarefa de encontrar uma última e definitiva perspectiva por meio da qual vislumbrar minha apagada cidade. Queria vê-la do alto dos seus edifícios, vê-la com a consciência total de que a estava vendo, abarcando-a integralmente com meu olhar. O palco desta experiência não poderia ser qualquer prédio. Queria posicionar-me num lugar que todos os Ergelenses pudessem ver ou, pelo menos, já tivessem visto. Meu desejo não era apenas estar no topo desse locus abstrato e totalizante chamado cidade de Ergela, mas também estar no alto daquilo que, com maior ou menor intensidade, definisse e diferenciasse Ergela para os seus habitantes. Às margens do Abiaug há uma alta torre – o Ortemosag – que já foi protagonista de postais, comerciais, filmes e propaganda eleitoral. Poucos estão habilitados para subir no Ortemosag e mais raros ainda são os que desejam faze-lo. O Ortemosag era, contudo, o único prédio que se enquadrava nas exigências do meu experimento. Demorei algumas semanas até obter as autorizações e equipamentos necessários para alcançar o ápice da torre. Depois, comecei a subida. Superei os noventa e dois metros do edifício em poucas horas e experimentei leve vertigem uma vez que atingi o “cume”.

Lá estava a tortuosa retícula urbana de Ergela, que se estendia até chocar-se contra morros distantes. O movimento caótico de carros e gentes, visto do topo, era apenas um sutil tremor sobre calçadas e avenidas. Eu estava posicionado no alto do mundo dos ergelenses. Estes, por sua vez, se encontravam completamente alheios a mim. Arrogantemente, cheguei a pensar que aquele lugar, o topo do Ortemosag, era o perfeito panóptico, a mais totalizante das perspectivas, o local a partir do qual podia impor sobre os demais a alienante falsa sensação de anonimato. Eu, acima dos passos, dos ruídos, acima da degeneração e da decrepitude, compreendia inteiramente tudo o que poderia ser Ergela!

Para economizar os esforços da descida, optei pela queda livre que, entretanto, se fez mais longa que a própria subida. Enquanto caía lentamente, ignorado por todos, fui acometido por uma repentina pergunta: “Mas a final, o que havia visto?”. Nada! Nada além do itinerário dos meus próprios passos em Ergela. Nada além da Ergela que eu mesmo inscrevi, utilizando-me dum cinzel forjado com ínfima parte do mar de possibilidades onde todos bebem para marcar seus caminhos num campo onde a princípio só há latência. Mesmo na mais vertiginosa das altitudes, jamais estaria fora de Ergela, nem ela alheia a mim, porque ela não existe. Ergela é como um idioma que só irrompe no real quando se faz palavra falada. Ergela existe no ato daqueles que a utilizam, que transitam nela, que a picotam em intermináveis rotas. Aquele cosmos, aquele todo que do alto do Ortemosag acreditei abarcar, era uma miragem, a cabal ilusão do não lugar de onde vislumbramos tudo. Um falso Aleph, uma perspectiva que seria inócua salvo pelas reflexões que me suscitou. Não tinha visto nada do tudo que acreditei encampar. Nada além do meu próprio e específico lugar, lugar a partir do qual não posso apreender nem a posição nem os trajetos dos demais: ilusão do caos, ilusão do todo; ilusão necessária para que os ergelenses sigam exercendo seu artesanato cotidiano da liberdade com as sobras do ritmo parelho que os homogeneíza.

Por fim o chão me recebeu suave, amortecendo todo e qualquer impacto. Segui caminhando, satisfeito com meu fracasso, feliz por não ter visto nada do lugar onde acreditei que teria a oportunidade de ver tudo. Ergela não se esgotou, eu não a esgotei, soube deter-me justamente no limiar dessa paranóia impossível.

2 comentários:

Polliane Trevisan Nunes disse...

Gostei muito, Alex!
Me senti meio ergelense.

Unknown disse...

também me senti ergelense. Aliás, um ergelense nacirema nital!