terça-feira, 4 de janeiro de 2011

“Caso Battisti”: Rede Globo e ultra-direita italiana protestam em uníssono


Alex Martins Moraes

Há algum tempo que eu planejava escrever algo a respeito da tendência anti-democrática manifestada pela imprensa brasileira. Era minha intenção demonstrar que práticas monopolistas no âmbito do mercado somadas a um alinhamento político com a direita convertiam as grandes empresas da informação em opositoras concretas do aprofundamento democrático neste país. Não se trata apenas de um problema com conteúdos ou estilos de abordagem dos fatos noticiados. Se fosse assim, bastaria organizar uma oposição adequada, o que, aliás, os veículos alternativos já estão tentando fazer. Ocorre que a estrutura do campo jornalístico brasileiro ameaça as grandes ambições da constituição de 1988. A mídia faz precipitar sobre a sociedade brasileira certa cultura de debate que valoriza o exercício de manutenção e reprodução do senso comum, este eficaz alimento das consciências que desejam expurgar de si quaisquer ímpetos "ideológicos" ou "autoritários". Só que o senso comum não é ingênuo, ele espelha um sistema de valores que possui certa coerência e atende a determinados interesses. Geralmente, tais interesses constituem o que costumamos chamar de "status quo". É necessário diminuir o raio de abrangência da mídia comercial para dar vazão à emergência de outras vozes. Numa democracia que almeja o pluralismo, deve-se expandir ao máximo possível o direito das pessoas de narrarem as verdades de sua própria experiência social.

Um fato recente nos ajuda a economizar longos resgates históricos e sistematizações teóricas para demonstrar o compromisso da mega imprensa com ideais antidemocráticos. No último dia do seu mandato, o ex-presidente Lula vetou a extradição de Cesare Battisti para a Itália. Ótimos artigos publicados no circuito alternativo detalham os aspectos históricos e jurídicos que rodeiam o “caso Battisti”. Não cabem dúvidas de que a decisão tomada por Lula é, pelo menos, aceitável e encontra suas justificativas no amplo manancial do direito internacional contemporâneo (sugiro a leitura do relatório elaborado pelo ex-ministro da justiça Tarso Genro ao conceder refúgio político a Battisti em 15 de janeiro de 2009: http://www.tarsogenro.com.br/artigos/fullnews.php?id=90). Quero centrar minha atenção no tipo de cobertura que a televisão aberta destinou aos últimos desdobramentos do "caso Battisti".

No dia 4 de janeiro de 2011, o Jornal Nacional da Rede Globo apresentou uma reportagem relativamente extensa onde se noticiava a reação de alguns grupos políticos italianos frente à opção do governo brasileiro por não extraditar o ex-ativista Cesare Battisti. Como o editorial da Globo desconhece os pronomes indefinidos, a expressão “alguns grupos políticos” foi alterada para “italianos” em uma frase do tipo: “italianos protestaram na frente da embaixada brasileira”. Posteriormente, a correspondente internacional da Rede Globo informou, diretamente de Roma, que partidos de direita e de esquerda teriam manifestado sua oposição a não-extradição do “ex-terrorista” Cesare Battisti. Se discutíssemos o tipo de valoração moral embutida no termo “ex-terrorista”, facilmente veríamos que está relacionado com a retórica da direita italiana (e brasileira, é claro). Seria, contudo, chover no molhado fazer a afirmação de que todo e qualquer termo que utilizamos em nosso cotidiano atende a interesses determinados. Não existe neutralidade nas palavras, até porque elas só fazem sentido em conjunturas sociais específicas das quais a ação política nunca está alheia. Somos animais políticos, afinal. Desejo iluminar, aqui, outro aspecto da reportagem, um pouco menos óbvio. Destrinchá-lo exige certo esforço no sentido de buscar dados alternativos que complexifiquem a notícia dos protestos na Itália oferecida pelo Jornal Nacional.

Ao dizer que grupos políticos de “esquerda e de direita” participaram das manifestações na embaixada brasileira, a correspondente européia da Rede Globo deu a entender que existe unanimidade dos italianos em opor-se à decisão do governo brasileiro. Não vem ao caso saber se ela, pessoalmente, quis dizer isso. O fato é que disse. Tampouco importa se estava mal informada sobre a composição do espectro político italiano. O fato é que se contentou com as informações que recebeu das suas fontes sem opor-lhes nenhuma crítica. A grande imprensa é assim, pensa rápido e reproduz mais rápido ainda. Ela se alimenta do senso comum, que é objetivo e transparente, “ingênuo” e espontâneo. Battisti “é” um terrorista, portanto, ninguém em sã consciência poderia defendê-lo. A lógica do raciocínio é tão simples quanto perversa.

Recorri a fontes italianas para conhecer quais grupos “de esquerda e de direita” protagonizaram os protestos em Roma, Milão e Turim. Não foi difícil encontrar falhas na reportagem da Globo. O diário La Reppublica (segundo em tiragem, pertencente ao grupo Espresso do financista Carlo de Benedetti) enumera sete coletivos políticos que se manifestaram publicamente a favor da extradição de Battisti: PDL (Povo da Liberdade), UDC (União dos Democratas Cristãos e de Centro), Movimento pela Itália, PD (Partido Democrático), IDV (Itália dos Valores), La Destra (A Direita) e Liga Norte. Os únicos partidos que não se auto-declaram de direita nesta lista são UDC, PD, IDV. O primeiro deles se considera de centro e os dois últimos estão na centro-esquerda, o que se poderia chamar de social democracia européia. Todos os demais partidos integram setores ultra-conservadores e mesmo fascistas da sociedade italiana. PDL é a agremiação de Silvio Berlusconi; Movimento pela Itália lidera, atualmente, uma campanha anti-musulmana e xenófoba; La Destra rompeu com o partido de Berlusconi por considerá-lo muito “moderado” e Liga do Norte representa um nacionalismo separatista e chauvinista que prega a expulsão de imigrantes provindos de países não-europeus. Diante destas informações já seria possível afirmar que a reportagem do Jornal Nacional é, no mínimo, reducionista. Entretanto, a má-fé não pára por aí. Os jornalistas da Rede Globo se esqueceram de noticiar outro acontecimento que teve visibilidade inclusive na imprensa conservadora italiana: foram fixados em diversos locais do centro de Roma chamativos cartazes (na foto) a favor da não extradição de Battisti. A frase principal declara: “Battisti livre”. Outro trecho diz o seguinte: “A perseguição terminou. A Inquisição cessou graças à determinação e coragem do presidente Lula. Os guardiões do capital, pelo menos desta vez, foram embora com as mãos vazias”.

Todas estas informações contribuem para iluminar o lado obscuro da cobertura jornalística hegemônica em torno do “caso Battisti’. Na reportagem da qual me ocupei aqui, a manipulação operou em dois movimentos. Primeiro, a opinião manifestada por grupos de ultra-direita e por pequenos e acanhados partidos de centro italianos foi pinçada pelos repórteres globais. Depois, aquela mesma opinião converteu-se, magicamente, em síntese da repercussão internacional da não extradição de Battisti. Ao conhecermos alguns dados obliterados pela redação da Rede Globo, podemos localizar com mais precisão que tipo de ideologia recebe destaque, diariamente, no noticiário nacional da família Marinho. Causa assombro e preocupação que uma rede de televisão monopolista se comporte como porta-voz do fascismo em um país cuja carta constitucional pugna pelo aprofundamento e pluralização dos direitos sociais que positivam e dignificam a diversidade de idéias, demandas e pontos de vista.

2 comentários:

DEUZAAA disse...

texto excelente.

Alex Moraes disse...

Obrigado, Deuzaa pela visita ao nosso Blog. Fico igualmente agradecido pelo elogio.