domingo, 30 de janeiro de 2011

RiO PoA



Não acredito que possa existir um tipo de caráter específico concernente a toda a população de uma região. O que ocorre são regularidades de postura e comportamento de acordo com os seguimentos sociais onde se encontram os sujeitos. Cada grupo humano comporta uma infinidade de padrões que se constroem em relação a referentes de classe, atividade laboral, grupo geracional, etc. De passagem pelo Rio de Janeiro, reparei, por exemplo, algumas características comuns a certa juventude classemediana que se move pelos circuitos artísticos dos bairros supostamente glamurosos da zona sul carioca. Estas singularidades se tornaram mais nítidas para mim quando as comparei com aquelas ostentadas por grupos geracionais e sociais semelhantes em Porto Alegre. Enquanto registrava minhas impressões sobre o assunto, fui me dando conta de que as palavras que escrevia deixavam transparecer algo de auto-crítica. Isto era inevitável, afinal, estava narrando, em alguma medida, meu próprio cotidiano. Passemos, pois, aos apontamentos.

No Rio de Janeiro, existe uma espécie de “glamurismo” talvez associado à impactante presença dos estúdios da Rede Globo na cidade. Muitos jovenzinhos cariocas mais ou menos descolados querem ser artistas ou, pelo menos, aparentar alguma proximidade com o meio artístico. Criados em apartamentos no Leblon, na Lagoa ou em “Copa”, aprenderam, desde cedo, a escutar Chico Buarque, ler o básico dos autores russos, arranhar francês e levar esse papo de desigualdade com leveza, na brincadeira. Aos vinte e poucos anos, alguns fazem teatro, outros jornalismo, talvez história, letras. Estetizados ao extremo, exprimem com gestos afetados uma sofisticação intelectual e um desprendimento social que não resistem de pé mais além dos figurinos. Falando de figurino, lembro-me de uma situação, no Baixo Gávea, que ilustra bem a atmosfera cênica que inebria a juventude carioca. Ao me abordar, um vendedor de cerveja quis saber de onde eu era. Respondi que vinha de Porto Alegre. Ele disse que morava no Rio, era nordestino, fazia teatro, tinha figurado em duas novelas globais. Comentou, também, que ao viajar para seu estado de origem, recebia tratamento diferenciado quando diziar ser do Rio de Janeiro. Esse sujeito, que vou chamar de Pedro, puxou um papo que tinha toda a aparência de floreio introdutório a duas informações cruciais: 1) ter participado de novela; 2) ser, a pesar dos pesares, um artista. No Baixo Gávea, Pedro se traveste de vendedor e empunha seu isopor alegórico para oferecer cerveja aos playboys pedantes que, bem no fundo, são “iguais” a ele: gente da TV, gente do teatro. As diferenças entre as pessoas parecem reduzir-se a questões de figurino. Existe um muito bem consolidado “modelo” de jovem admirável cujo fulgor seduz a dominantes e dominados. Os primeiros se divertem, os segundos se frustram. Nessa encenação juvenil, o drama é sempre o mesmo e a função de interpretá-lo cabe a um elenco quase estamental. Os papeis não mudam. Mas sem problemas, pega leve, afinal, é tudo brincadeira mesmo.

Em Porto Alegre, bom mesmo é ser subversivo, latinoamericanista, violeiro, gay, bi, rocker, mod, folk ou tudo isso junto . É chegar na mesa do boteco e jogar ali em cima, como cartas de truco, meia dúzia de “experiências de vida” que valem mais que contra-flor. Os naipes poderosos são, em ordem crescente: “viagem-a-buenos-aires”, “viagem-a-machu-picchu”, “participação-em-suruba”. Em ambientes revolucionários, as super cartadas variam, podendo ser: “ter-apanhado-da-polìcia”, “ter-comido-a-deputada-de-esquerda”, “ter-pixado-o-muro”. Parece que a juventude portoalegrina abastada (me refiro, prioritariamente, àquela que se criou na Zona Sul, no Bom Fim e, em menor medida, nos bairros emergentes da Zona Norte) vive a constante emulação da permissividade, da transgressão. Trata-se de uma retórica progressista tão avançada que, às vezes, soa reacionária, rotuladora, sexista, performática, desarraigada da ação transformadora. Porto Alegre também concentra bolsões de intelectuais críticos, principalmente na Av. Independência e em certos redutos da Cidade Baixa. O traço definidor dessa intelectualidade é seu anti-intelectualismo quase maoísta. Trata-se de um tipo de “intelectual orgânico” que Gramsci detestaria. Valorizam a longa exposição das suas façanhas e desprezam qualquer ânimo analítico que não tenha por base a evocação de percepções individuais pinçadas em experiências folk-etno-cool (créditos parciais desta expressão: João Quaresma). Os intelectuais mais ousados e vanguardistas enaltecem suas vivências “na vila” ou “no projeto pescar”, onde tiveram a oportunidade de conviver com negros e pobres pela primeira vez na vida e onde desenvolvem fervorosa atividade de moralização e iluminação dos subalternos. Os livre-pensadores portoalegrenses decantam um humanismo transcedental e burguês, leve e sincero, absoluto, individualista. Outros grupos, menos massistas e mais idealistas não acreditam que breves e lúdicos passeios pelo chão batido dos arrabaldes conduza a qualquer abertura mental ou revisão conceitual criativa. Recorrem, então, à ayahuasca (o “Daime”). Geralmente a narrativa que oferecem da sua intoxicação (ou “enteogênese”, no léxico local) vem acompanhada de um sorriso blaze ornamentado com gestos braçais lentos e arredondados partindo do centro do peito.

Mais do que exercitar a ironia, indiquei, aqui, aspectos detestáveis de contextos que, na verdade, não considero descartáveis. Sua existencia é instigante, rende várias linhas de crônica jocosa, talvez até possa inspirar alguma etnografia de última hora. Fica a sugestão.

2 comentários:

Daniel Etcheverry disse...

Excelente! Muitas vezes me debati tentando entender as formas mais trivias de expressao dos gaúchos. os setores diversos da populaçao de Poa quase nem se tocam. a itneraçao entre "tribos" é meramente contratual. Acho que é uma boa idéia fazer algum trabalho etnográfico mais profundo.

laura p. disse...

Genial, Alex.

Inteligente e ácido. Acho que é exatamente isso.
Fiquei com saudades de conversar contigo ao vivo e a fumaças.

Grande Abraço, Laura Pujol