segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Auto-exílio

Agora, mais do que nunca, a frase que proferiu Eduardo Galeano à época do seu regresso ao Uruguai, depois de dez anos de exílio na Espanha, faz sentido para mim: “Ninguém é herói por ir embora, nem patriota por ficar”.

Cumpro, hoje, o oitavo mês de exílio em Buenos Aires. Fui um dos primeiros em deixar meu país, após consumado o golpe de Estado. Fiz o que estava ao meu alcance durante os primeiros tempos da resistência. Não poderia, logicamente, afirmar que fiz tudo o que era possível, pois seria hipocrisia. Entretanto, o que pude conceber como realizável em meio aquele cenário extremamente confuso e inesperado, foi posto em prática. Levei a cabo uma rebelião solitária que atravessou distintas fases e corrompeu-se, finalmente, com minha tímida aproximação aos partidos políticos ainda não extintos. Essas agremiações, a duríssimas penas, debatiam-se contra as paredes sufocantes da nova institucionalidade, mal conseguindo impingir pequenos reveses ao autoritarismo corrupto já comodamente alojado nos gabinetes de jacarandá da Capital Federal.
Entreguei as armas num dia qualquer de agosto, quando, subitamente, me vi acometido por violenta sensação de guerra perdida e campo arrasado. Nenhum evento especial me levou a abdicar da condição de subversivo interno. Gostaria de poder dizer que o aparato repressivo estava no meu encalço, mas não. Outros tantos nomes encheriam as listas de procurados antes que eu, quem sabe, viesse a ser incluído nos catálogos policiais. Não nego que me apeteceria empreender alguma emocionante fuga do país, contudo, meu embarque no aeroporto, foi dos mais banais: espera de quinze minutos na fila para o “check in”, vinte minutos mais na sala de embarque e, por fim, a decolagem num avião da Aerolineas. Em poucas horas, após viagem sem turbulências, começava minha vida no exílio auto-imposto.

Confesso que durante as primeiras semanas em Buenos Aires, cheguei a questionar a validade da aventura do exílio mas, uma vez que me senti incorporado as fileiras da boemia nativa semi-intelectual , um morno conforto passou a pautar minha vida cotidiana. Sim, transcorrido o primeiro mês em terras estrangeiras, eu já tinha uma rotina , uma cotidianidade. Acordava não antes das dez horas da manhã, tomava café no hotel, comprava o jornal – do qual lia apenas os artigos menos mundanos da seção cultural – e, na parte da tarde, me dedicava a caminhadas mais ou menos demoradas pelo Centro ou por San Telmo.

Do terceiro mês em diante, tomei por hábito gastar as horas interpostas entre o meio dia e o anoitecer num bar-restaurante de Palermo. Ali, fiz amizade com o garçom que, para selar nosso vínculo de camaradagem, deixou de cobrar-me pelo ovo adicional que incrementava os sanduíches quentes do meu café da tarde.

As noites foram preenchidas com porres ocasionais, Haydeé e rasa conversa literária, que entretinha por longas horas a mim e aos meus amigos. Causava-me certa graça observar o entusiasmo e o orgulho com que alguns me apresentavam aos demais membros do seu círculo de relações como “exilado político”. Percebi que, naquele meio social, ter proximidade com portador de semelhante título de nobreza era um potencializador de status. Como nesse sistema de trocas simbólicas eu só tinha a ganhar, dramatizava com exagerada veemência o papel de lutador social desterrado pelo Estado autoritário. Por vezes, me soava medíocre a maneira como todos se mobilizavam para dar legitimidade a minha vulgar atuação. Quiçá só eu visse as coisas daquela forma, precisamente por conhecer muito bem o pequeno-burguês acomodado que se ocultava com ardil sob a roupagem de intelectual engajado.

No décimo dia de cada mês, recebia algum dinheiro em minha conta do Banco de la Nación. Tais ingressos eram fruto da preocupação do núcleo familiar com meu bem-estar. Vez que outra, conseguia vender fotografias para um órgão alternativo de imprensa que desenvolvia atividades no meu país e desferia ácida crítica a ditadura. Isso subsidiava a manutenção do meu equipamento de trabalho, bem como da minha rotina de bares. Poucas vezes me animei a sair de Buenos Aires. Entre minhas escassas incursões a outras partes da República Argentina, confiro especial destaque a uma viagem realizada à província de Corrientes para registro fotográfico do culto a santos populares da região. Os custos dessa pequena expedição foram cobertos por uma revista etnográfica de Oluapãos, a grande metrópole da minha terra natal. Recebi, por correio, um exemplar da publicação acadêmica. Nela, estava em destaque o artigo ilustrado com as fotografias creditadas a Martim Assunção, “correspondente no exílio”. Ao percorrer com os olhos essas palavras, não pude deixar de esboçar sorriso sutil e parcialmente irônico. Logo de duas ou três menções ao meu nome nos periódicos da “contra-mídia combativa”, chegava a minha caixa de e-mails vetusta quantidade de mensagens: estudantes aduladores externando solicitude com respeito as minhas intervenções na imprensa alternativa; outros exilados buscando a formação de redes de apoio e resistência no exterior; convites para escrever artigos ou enviar imagens. Em fim, nada que me comovesse especialmente.

Hoje pela manhã, percebi que meu cotidiano exalava o cheiro do marasmo. Questionei pela segunda vez a viabilidade do auto-exílio. Ainda ébrio pelo Fernett, comprei passagens de volta ao meu país, pois o regresso se me apresentava como única alternativa ao devir enfadonho que, não tão longe, se delineava. Liguei para Oscar Aldunate, um amigo uruguaio com quem compartilhara idéias semelhantes e um mesmo apartamento, meses antes de partir ao desterro. Queria que ele me colocasse a par do que estava acontecendo no pago que havia deixado há meses. Ademais, necessitava alguma manifestação efusiva de satisfação diante do meu retorno e, bem sei, Oscar é afeito ao exagero, sendo assim, me pareceu capacitado para tal tarefa. Não posso negar que recebi com surpresa – obviamente menor que aquela performatizada por mim durante o diálogo telefônico – a notícia da inclusão do meu nome na lista de procurados pela Polícia Federal. Como se não bastasse, o Ministério de Relações Exteriores da ditadura, fazia uma semana, conferira-me o título de persona non grata, impedindo-me, portanto, de pisar em solo nacional. “Lo siento Hermano, pero si querés volver a este país, tendrás que cruzar la frontera a pie y disfrazado de vaca. Te puedo ayudar si querés”. “Lo voy a pensar, Oscar. De todos modos, gracias”. Desliguei o telefone, ganhei a rua e senti o sol brando de março na cara. Minha mão, quase involuntariamente, deixou cair ao chão a passagem de retorno. Sentei-me no meio fio, acendi um cigarro e desejei que ele nunca terminasse.

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