quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Sexualidade e Machismo na Banda Oriental ou "das percepções que plasmei com Paula na mesa do bar"

Paula Vega, doutoranda em antropologia, uruguaia magrinha e morena, chegou por volta das 20h no Hostel. Eu estava na salinha de TV, aproveitando o calor da lareira. Naquela noite conversaríamos um pouco a respeito da minha investigação sobre migrações, uma área de interesse que ambos compartilhamos. Coloquei uma manta e ganhamos a rua gelada, Paula me levou ao Lobisón, barzinho enterrado num porão, ambiente aconchegante e vazio, como a maioria dos botecos de Montevidéu em plena semana. Pedimos cerveja negra e aos poucos o diálogo fluiu. Fluiu e dilatou-se, incorporando outros temas, entre eles, sexualidade e machismo. Quero compartilhar com vocês algumas das percepções que surgiram naquela mesa de bar.

Aos solteiros, homens ou mulheres, faço um rápido esclarecimento: se tiverem planos de viajar ao Uruguai, mais especificamente a Montevidéu, não desanimem. Os apontamentos eventualmente desestimulantes que podem aparecer nas linhas seguintes são fruto de observações quase desinteressadas, reflexos de experiências pessoais, projeções que beiram o perigoso generalismo.

Há tempos me chama a atenção o fato de as mulheres uruguaias serem menos extrovertidas e extravagantes que suas congêneres brasileiras em diversos planos, inclusive no da performance sexual. O sexo, ainda que ronde as mentes orientais (gentílico para os nascidos na República Oriental do Uruguai) com tanta intensidade como ronda as mentes tupiniquins, aflora de maneiras distintas no cotidiano dos uruguaios. Expressar atração sexual mediante trova (ou, como preferem os paulistas, xaveco) é uma aventura e um risco que praticamente está negado a moça nascida na margem norte do Rio da Prata (talvez coisa semelhante ocorra na margem Sul, em Buenos Aires, mas esse é assunto para outro momento). Durante nossa conversa no Lobisón, Paula passou em revista uma série de situações por ela vividas onde ficou patente o desconforto dos homens uruguaios diante de situações nas quais o apetite sexual feminino pudesse romper com a lógica natural. Esta lógica natural é a que coloca o potente varão como único ocupante do lisongioso posto de conquistador, sedutor de multidões. No Brasil a prática dominante também aponta neste sentido, entretanto, novos discursos – dos quais não me arriscaria a conjeturar o teor de hipocrisia – têm ganhado visibilidade e alcançado legitimação. O que chama a atenção no Uruguai, entretanto, é o amplo respaldo social auferido ao mais escrachado machismo. Paula alertou-me, por exemplo, para o teor das “cantadas” recebidas pelas mocinhas nas ruas e bulevares da capital uruguaia. Usando como comparação os gracejos masculinos correntes em terras brasileiras, minha companheira de mesa identificou, nas cantadas uruguaias, um conteúdo bem mais violento. Para Paula, as manifestações verbais de atração sexual nas ruas do Brasil soam muito mais como um “convite”, uma “proposta” - que pode variar no seu teor desde um comedido “casa comigo” a um despudorado “vem cá que eu vou te comer”. Já no Uruguai, as cantadas teriam uma marcada conotação de diminuição da mulher, de esterilização social: “puta”; “te voy a garchar”; “mirame, putita”; “está buena la perra”.

No âmbito das relações entre companheiros de trabalho, também a conduta da uruguaia está cuidadosamente vigiada, a mercê de uma série de qualificativos nada prestigiosos. Sair com alguém com quem se divide o mesmo ambiente de trabalho é algo delicado. Nem sempre, o fato de uma mulher beijar um homem significa que está disposta a partilhar com ele todos os dias da sua vida até o último. Contudo, na Banda Oriental, o compromisso, a relação baseada na fixidez, é altamente desejada, sendo interpretada como desdobramento natural de uma boa noite de sexo. Obviamente o desejado, o legítimo, em diversas ocasiões não pauta a totalidade das práticas sociais. Arriscar-me-ia a dizer, inclusive, que a maioria das condutas não reflete o socialmente desejado em sua integridade. Há margens de diálogo e espaço para a astúcia. Todavia, nos escritórios e talvez salas de aula uruguaias, as margens para a divergência são bastante policiadas e o discurso dominante acena com a arma da rotulação quando limites são forçados. Na opinião de Paula, um dos mais poderosos e difamadores adjetivos aplicados a mulheres que experimentam alguma rotatividade de parceiros e acabam sendo descobertas – e num clima de fábrica, escola ou escritório as “descobertas”, tornadas públicas, podem ser altamente lucrativas– é “atorranta”. “Atorranta” significa “vagabunda” quando aplicado a mulheres. Contudo, um homem “atorrante” é apenas um “chato”. Investida da condição de “atorranta” uma moça já não pode ser levada a sério, perde prestígio, pode ver comprometido seu capital social. No Uruguai, Paula me comenta que está sujeita uma série de adjetivos que no Brasil, apesar de vigentes, não se aplicam tão maciçamente: por ter cabelinho curto, é lésbica; por não possuir parceiro fixo, “atorranta”; por ser intelectualizada, é temerária para muitos. Não pude deixar de me lembrar do comentário que ouvi de um amigo a respeito de suas exigências no mercado matrimonial: “prefiero mujeres huecas” (prefiro mulheres ocas). Juan, conhecido meu, gay, lamentava: “me da asco estar con otros hombres, aunque me gusten, porque fui enseñado a odiar a los homosexuales” (tenho nojo de ficar com outros homens, ainda que eu goste deles, porque fui ensinado a odiar os homossexuais).

As franjinhas deitadas sobre um dos lados do rosto, os sapatos baixinhos, uma simpatia sincera, mas cuidadosamente manobrada de modo a não escorregar em malícia, são característica de muitas meninas uruguaias entre doze e vinte e poucos anos. “Cuando se vuelven más viejas, tienen más actitud” (quando ficam mais velhas, têm mais atitude), avaliou alguém. A punheta é instituição altamente definidora da adolescência. Mas há meninos uruguaios que se queixam de, aos vinte anos, ainda não terem superado essa etapa da juventude no que tange a ampliação dos horizontes sexuais. Mais sorte têm os “muchachos” do campo, que podem contar com o tradicional “debut” de prostíbulo e com os concorridos traseiros ovinos. “Después uno se resigna”, afirma Homero, olhando tristemente para o chão, “se resigna y aprende a esperar a que se le cruce una veterana” (se resigna e aprende a esperar até que uma veterana cruze seu caminho). Estabelece-se, assim, um tenso e engessado marasmo sexual corroborado por homens e mulheres de forma mais ou menos consciente.

“Brasil es el paraiso sexual!”, exclamou Paula já no final da última garrafa de Patrícia Negra. Concordei sem reservas.

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